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Texto 3

 

UM APÓLOGO

 

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:

 

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

 

- Deixe-me, senhora.

 

- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

 

- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importa-se com a sua vida e deixe a dos outros.

 

- Mas você é orgulhosa.

 

- Decerto que sou.

 

- Mas por quê?

 

- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

 

- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

 

- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

 

- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

 

- Também os batedores vão adiante do imperador.

 

- Você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e íntimo. Eu é que prendo, ligo, adjunto...

 

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

 

- Então, senhora linha, ainda teima no  que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

 

A linha não respondia nada; ia andando.

 

Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

 

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

 

- Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

 

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

 

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura.

 

Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

 

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

 

Assis, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.

 

O texto de Machado de Assis pertence à narração. Os elementos que constituem esse tipo textual são enredo, ambiente, narrador, personagens, tempo. O texto camufla o tempo em cronológico e somente no fim ele se mostra, aos que percebem, como psicológico. Inicialmente o tempo não se mostra, nunca se saberá a época em que ela se passa, mas é de suspeitar que seja uma época de gala, de muita pompa e riqueza, já que são retratados fatos da casa de uma baronesa, que frequenta bailes e dança com ministro e diplomatas.

 

A leitura atenta do texto demonstra que a história se passa:


Outras questões do mesmo concurso: Pref Caruaru / AFM (Pref Caruaru) / 2023


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