Pela segunda vez, a moça tomou coragem; a pretexto de dor de dente, conseguiu licença para faltar ao serviço. Não lhe foi difícil descobrir o endereço da gorda e exageradamente gentil madama Carlota, atual cartomante bem-sucedida, moradora de apartamento próprio, fã de Jesus, “doidinha por Ele”, que sempre a ajudou.
Mais falando de si mesma do que de sua “cliente”, a cartomante concluiu: “Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!” Resolveu, então, animar a pobre coitada. “Tenho grandes notícias para lhe dar:
Sua vida vai mudar completamente! Até seu namorado vai voltar e propor casamento e seu chefe não vai mais lhe despedir! E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos. Parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você!”
Saiu da casa da cartomante mudada. “Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro”.
Ao dar o passo para descer da calçada, Macabéa foi atropelada por um luxuoso Mercedes amarelo, que fugiu, sem que o motorista prestasse socorro. Ela bateu na quina do meio-fio com a cabeça, que começou a sangrar. Tomada por uma espécie de delírio oco, observou que havia capim na rua. “O Destino tinha escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta” como se ela fosse “uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida pingando sangue”. Só que Macabéa lutava muda. Então começou levemente a garoar: Olímpico tinha razão ela só sabia mesmo era chover!
Os curiosos que se aproximaram nada fizeram “como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam. O que lhe dava uma existência”.
“Ela se mexeu devagar, acomodou o corpo em posição fetal. Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar eu sou, eu sou. Eu sou. Teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta a graça a que vós chamais Deus? Sim? Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Então ela pronunciou uma frase que ninguém entendeu: “Quanto ao futuro.” Vomitou um pouco de sangue. Estava enfim livre de si e de nós.
Viver é um luxo. Pronto, passou.”
Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (com adaptações).