TEXTO 1
Aquele que se dedica à crítica das ações humanas jamais se sente tão embaraçado como quando procura harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois é comum que se contradigam, a tal ponto que não parecem provir do mesmo indivíduo. Dizem que o Papa Bonifácio VII assumiu o papado como uma raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cãoA). E Nero, verdadeira imagem da crueldade, tendo de assinar a sentença de um criminoso, observou: — Prouvera a Deus que eu não soubesse escrever! — tanto lhe apertava o coração condená-lo à morte.
Há tantos exemplos semelhantes que estranho ver por vezes gente de bom senso obstinando-se em dar de alguém uma idéia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam suas ações, dissimulando-as e deformando-as, se necessário, para que caibam no molde. O imperador Augusto escapou-lhes; deparamo-nos nele com uma tal diversidade de ações e atitudes no decurso de sua existência, que os mais ousados juízes, renunciando a julgá-las em conjunto, consideram-no personagem indefinido. Acredito que a constância seja a qualidade mais difícil de se encontrar nos homens. Quem os julga de acordo com cada um de seus atos, está mais apto a dizer a verdade a seu respeito.
Se alguém traçasse leis de conduta a orientar inflexivelmente seu regime de vida, veríamos brilhar nos atos e atitudes dessa pessoa excepcional uma harmonia e em seus costumes uma ordem evidentes, como se vê em Catão, o Jovem: quem nele toca uma tecla, toca todas, pois há nele a harmonia dos sons bem afinados, que nunca se entrechocamB). Não seguimos, nós outros, tão sábio exemplo, e cada uma de nossas ações decorre de um juízo específico. Nossa condição é tão singular que não raro o próprio vício nos impele a fazer o bem. Daí que não se deve tirar de um ato corajoso a conclusão de que um valente o praticou. Valente será quem o for sempre, em todas as ocasiõesC). Se for um hábito e não um gesto imprevisto, a virtude o fará mostrar sempre a mesma resolução; suportará esse homem, com igual atitude, tanto a leve enfermidade em seu leito quanto o grave ferimento no campo de batalha.
Não há maior valentia do que a de Alexandre, o Grande, e no entanto ela nem sempre o acompanha. Por incomparável que seja, tem suas falhas, perturba-se à mais insignificante suspeita de conjuras, o que o leva a temores infundados e a reações de violência e crueldade absurdas, incompreensíveis diante de sua habitual apreciação dos fatos. Eis por que, para reconhecer a virtude de um homem, é preciso seguir suas pegadasD), penetrar sua vida; e se não deparamos com a constância alicerçando seus atos, “com um plano de vida bem ponderado e previsto” (Cícero), se sua marcha se modifica segundo as circunstâncias, abandonemo-lo.
Somos todos constituídos de pedaços e peças juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demaisE). Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: “Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem” (Sêneca). Se assim é, não deve um espírito refletido julgar-nos meramente por nossos atos exteriores; cumpre-lhe sondar nossas consciências, determinar os móveis a que obedecemos em cada circunstância. É tarefa elevada e difícil, e desejaria por isso mesmo que menor número de pessoas se dedicassem a ela.
(Extraído e adaptado de: Montaigne, “Da incoerência de nossas ações”. In: Ensaios, Michel de Montaigne, tradução
de Sérgio Milliet, 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 159-162. 565 palavras.)