Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu.
Fora para o lado do mar que aquele homem pretendera ir, antes mesmo de ter encontrado por feliz acaso o hotel. Mas — sem mapa, conhecimento ou bússola — embrenhara-se terra adentro.
“Hoje deve ser domingo” — chegou mesmo a pensar com certa glória, e domingo seria o grande coroamento de sua isenção. Tratava-se de seu primeiro pensamento claro, desde que deixara o hotel. Na verdade, desde que fugira, era o primeiro pensamento que não tinha mera utilidade de defesa. De início, aliás, Martim até não soube o que fazer com ele. Apenas agitou-se à novidade, e coçou-se voraz sem parar de andar.
Foi mais além que estacou diante do primeiro passarinho. O passarinho negro estava pousado num ramo baixo, à altura de seus olhos; com mão pesada e potente, o homem pegou-o sem machucá-lo, com a bondade física que tem uma mão pesada.
Com o leve peso a carregar, o homem continuou sua marcha entre pedras.
— Não sei mais falar, disse, então, para o passarinho, evitando olhá-lo...
Só depois pareceu entender o que dissera, e então olhou face a face o sol. “Perdi a linguagem dos outros”, repetiu, então, bem devagar, como se as palavras fossem mais obscuras do que eram, e de algum modo muito lisonjeiras.
Alguma coisa estava lhe acontecendo. E era alguma coisa com um significado, embora não houvesse um sinônimo para essa coisa que estava acontecendo. E não havia sinônimo para nenhuma coisa...
Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria. E, no entanto, oco, mudo, rejubilava-se. Assim, ao remexer agora com fascínio ainda cauteloso na linguagem morta, ele tentou, por pura experiência, dar o título antigamente tão familiar de “crime” a essa coisa tão sem nome que lhe sucedera.
Clarice Lispector. A maçã no escuro. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998 (com adaptações).