Relógios
O dramaturgo Nelson Rodrigues - criatura de temperamento trágico e célebre autor de frases antológicas - terá dito um dia, talvez paternalmente: “Jovens, envelheçam”. Eis aqui um pedido desnecessário: a velhice virá. de qualquer modo. para quem conseguir envelhecer. Por outro lado, a juventude nunca se perde de todo: aposenta-se. fica guardadinha vocação nostálgica do copo e ainda ajudará, ao fim de tudo, a compor os traços da boa melancolia. das lembranças que Os seres crepusculares ainda consigam tonificar dentro de si.
Não fossem os variados impulsos do tempo, com o que iríamos nos distraindo? Todos passamos por várias idades, por vários tipos de relógio. Hã os que adiantam as coisas. há os que as atrasam. E há os que param inteiramente fora de hora. Sem falar nos relógios exibidos que se acham especialmente importantes e Insistem em cantar a cada quarto de hora.
Jovens, envelheçam” — eis a provocação desmedida que partiu de um senhor já vivido e definitivamente cético. As paixões juvenis têm pressa, meu caro Nelson Rodrigues. e exigem providências imediatas. Ninguém segura as ondas de um mar revolto.
E se fôssemos falar do tempo da infância, quando nossa imaginação esta no grau natural de nossas primeiras reflexões interrogativas? Eis aí um relógio que fica fazendo tique-taque, sem querer parar, em algum canto de alguma casa perdida.
Numa cena da minha mais antiga memória de menino, eu estava sentado na sarjeta, depois de uma chuva grossa, em frente de casa, com os pés na água da enxurrada que sequestrava meus olhos fixos, fazendo -me esquecer de mim mesmo e e da necessidade de voltar a algum lugar, enquanto olhava infinitamente para os rebrilhos daquele riachinho escorregando rua abaixo. Creio que foi esta a primeira vez que entrei num tempo especial um tampo esvaziado de tempo. Uma espécie de relógio sem ponteiros. Muito tempo depois, acabei envelhecendo, sim. seu Nelson Rodrigues.
(MEDEIROS, Alcindo Fortunato. Casos de almanaque, a editar)