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Texto XII
Impugnada a todo instante pela escravidão a ideologia liberal, que era a das jovens nações emancipadas da América, descarrilava. Seria fácil deduzir o sistema de seus contrassensos, todos verdadeiros, muitos dos quais agitaram a consciência teórica e moral de nosso século XIX. Já vimos uma coleção deles. No entanto, estas dificuldades permaneciam curiosamente inessenciais. O teste da realidade não parecia importante. É como se coerência e generalidade não pesassem muito, ou como se a esfera da cultura ocupasse uma posição alterada, cujos critérios fossem outros — mas outros em relação a quê? Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das ideias liberais; o que, entretanto, é menos que orientar-lhes o movimento. Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa. Para descrevê-la é preciso retomar o país como todo. Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em consequência, por este mesmo mecanismo. Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção europeia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal — e, sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção.
Roberto Schwarz. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992 (com adaptações).
No que se refere aos sentidos e aos aspectos linguísticos do texto XII, julgue (C ou E) o item seguinte.
A correção gramatical e o sentido do texto seriam preservados caso o período “Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força."fosse assim reescrito: Dessa forma, o favor atravessou e afetou, no conjunto e com mil formas e nomes, a existência nacional, embora a relação produtiva de base estivesse sempre ressalvada e assegurada pela força.