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TEXTO PARA A QUESTÃO

 

Galinhas, justiça

 

Nuno Ramos

 

O inferno, se existe, é com certeza um lugar cheio. O sofrimento solitário pode ser melancólico ou extremamente assustador – em filmes de terror, as vítimas estão quase sempre sozinhas –, mas o horror maior está associado à multidão. Isso está tão entranhado em nós que transfere-se facilmente aos bichos. Como não sentir aflição numa estrada, quando ficamos presos atrás de um caminhão cheio de porcos? Ou numa granja, diante de uma jaula de galinhas que tentam se mover num espaço absurdamente comprimido? Embora fossem mais comuns antigamente, há ainda, nas feiras ou mercados de periferia, lojas macabras onde ficam amontoadas, num cubo de penas e de cacarejos, esperando para morrer. O que resta de vivo nessas galinhas comprimidas às dúzias é puramente acidental e irrelevante, algo a ser interrompido em breve pela degola.

 

Galinhas parecem extremamente burras. Não representam a paz, como as pombas, nem a sabedoria e a vigília, como as corujas, nem a agressividade altiva e predadora, como os falcões ou os condores. Mas há o ovo, a obra-prima comum a todas as aves, uma perfeita combinação de higiene e de asco, de assepsia e de gosma, de transparência e amarelo de cádmio, de sol e placenta, desastre e construção, de solidez e fragilidade, origem e fim.

 

No entanto, mesmo neste grau mínimo de identificação, o sofrimento animal incomoda. E mais do que a ameaça ou efetivação da morte, é a comparação massiva de um largo número de indivíduos num espaço exíguo que parece insuportável. A multidão, tornada coisa física, peso e matéria, torna-se também repugnante – acho mais fácil ver cortado o pescoço de uma galinha do que observá-las enjauladas. Talvez seja apenas num momento como este, num estádio de futebol ou numa passeata, sufocados por quem também nos sufoca, que percebemos nossa dependência da atmosfera. Precisamos de ar à nossa volta, de vento, da curva côncava, sempre um pouco além de nós, e nossa visão faz o elogio da distância, do azul e da miragem.

 

É preciso renunciar à compressão física como castigo. Punimos nossa amável paralisia, o abandono de nossos membros à inércia como uma industriosidade gestual simplesmente histérica. E se fazemos isto conosco voluntariamente, imagine com aqueles que devem ser punidos. Estes são tratados pior do que galinhas enjauladas, amontoados atrás das barras como sacos vazios sem mistério e sem vida pregressa.

 

RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 73-81. (fragmento adaptado).

 

Isso está tão entranhado em nós que transfere-se facilmente aos bichos.”

 

O pronome demonstrativo “isso” é um elemento coesivo anafórico que se refere ao



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