O episódio de Casa de Pensão retrata uma das questões centrais para o desenvolvimento da sociologia como ciência.
“[...] Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se assentava ao lado dele e com quem vivia sempre de turra.
Um dia pegaram-se mais seriamente. Amâncio teria então oito anos. [...] quando entrou o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes lugares.
[...] Todos os meninos começaram a estudar em voz alta. [...] Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada.
[...] Pires levantou-se, [...] e sindicou do fato. Amâncio foi o único acusado.
— Sr. Vasconcelos! — gritou o mestre — por que espancou aquele menino?
Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe.
— É mentira! protestou o novo acusado.
— Que disse ele?! perguntou Pires.
Amâncio repetiu o insulto que recebera.
[...] — Cale-se atrevido! berrou o professor encolerizado a tocar a campainha.
[...] E, puxando a pura força o delinquente para junto de si, ferrou-lhe meia dúzia de palmatoadas.
Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.
— Ah! ele é isso? exclamou o professor. — Tens gênio, tratante?! [...] isso tira-se.
E voltando-se para o rapazito que levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio.
Este declarou formalmente que não se submetia ao castigo. O professor quis submetê-lo à força; Amâncio não abriu as mãos. [...] O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo aquilo.
Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo. [...] Amâncio foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua. [...] sofreu novo castigo; serviu de escárnio aos seus condiscípulos e, quando chegou a casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu-lhe ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e ao menino da bofetada.
Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformouse em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens. [...] Como aquele, outros fatos se deram na meninice de Amâncio. Todas às vezes que lhe aparecia um ímpeto de coragem, [...] que lhe assistia um assomo de dignidade, [...] o pai, ou professor, caíalhe em cima, abafando-lhe os impulsos pundonorosos. Ficou medroso e descarado. [...] Temia as consequências de qualquer desafronta. “Estava domesticado”.
AZEVEDO, Aluísio de. Casa de Pensão. Editora Ática, 1997.