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TEXTO I
O ESCRETE DO SONHO
Nélson Rodrigues
Quem devia escrever a história do tricampeonato era Mário Filho. Só ele teria a visão homérica do maior feito do futebol brasileiro e mundial. Nunca houve, na face da terra, um escrete tão humilhado e tão ofendido. Vocês se lembram do que aconteceu no Morumbi.
Sempre digo que a torcida vaia até minuto de silêncio. Mas em São Paulo foi demais. A torcida queria Edu, e Zagallo escalou Paulo César. A vaia começou antes do jogo, continuou durante e depois do jogo. Até hoje, não sei como Paulo César sobreviveu ao próprio massacre. Há um tipo de vaia que explode como uma força da natureza. Sim. Uma vaia que venta, chove, troveja e relampeja.
Os jogadores se entreolhavam, sem entender que os tratassem, no Brasil, como o inimigo, como o estrangeiro. Mas não era só a multidão. Também a imprensa, fora algumas exceções, dizia horrores do técnico, do time, dos jogadores.
Todavia, ninguém contava com o homem brasileiro. Cada um de nós é um pouco como o Zé do Patrocínio. O “Tigre da Abolição” era suscetível às mais cavas e feias depressões. Sua retórica sempre começava fria, gaguejante. Seus amigos, porém, iam para o meio da massa e começavam a berrar: — “Negro burro, negro analfabeto, negro ordinário!” E, então, Patrocínio pegava fogo. Dizia coisas assim: — “Sou negro, sim, Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes de minha pátria”. Para assumir a sua verdadeira dimensão, o escrete precisava ser mordido pelas vaias. Foi toda uma maravilhosa ressurreição.
A Copa do México desmontou a gigantesca impostura que a maioria criava em torno do futebol europeu. Os virtuosos, os estilistas, éramos nós; nós, os goleadores; nós, os inventores. E a famosa velocidade? Meu Deus, ganhamos andando.
Pelé, maravilhosamente negro, poderia erguer o gesto, gritando: — “Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes da minha pátria”. E assim, brancos ou pretos, somos 90 milhões de otelos incendiados de ciúme pela pátria.
(Brasil 4 x 1 Itália, 21/6/1970, na Cidade do México. Brasil tricampeão mundial.)
RODRIGUES, Nélson. In: A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1984. p. 158-160. Texto adaptado
Texto associado
O texto 2 (subdividido em seções) faz uma reflexão sobre a maneira como se comporta, em determinado momento, a sociedade brasileira, que, mais cedo ou mais tarde, teria que integrar negros e mulatos.
Texto 2
José Paulo Florenzano
FUTEBOL E RACISMO: O MITO DA DEMOCRACIA EM CAMPO A história do futebol brasileiro contém, ao longo de quase um século, registros de episódios marcados pelo racismo. Eis o paradoxo: se de um lado a atividade futebolística era depreciada aos olhos da “boa sociedade” enquanto profissão destinada a pobres, negros e marginais, de outro ela se achava investida do poder de representar e projetar a nação em escala mundial.
VÍNCULO MENOS ASSIMÉTRICO ENTRE NEGROS E BRANCOS O trem do futebol descortinava perspectivas promissoras no terreno das relações sociais. Mas embora transportasse ricos e pobres, negros e brancos, ele o fazia alocando os diversos grupos em vagões separados. Enquanto a juventude privilegiada agia de modo a reforçar as divisões internas da composição, a mocidade alegre dos subúrbios buscava franquear a passagem a fim de enriquecer a experiência da viagem. Caberia, nesse sentido, um papel de destaque aos jogadores que logravam transitar entre os diversos compartimentos.
LEÔNIDAS DA SILVA: IDENTIDADE AMBÍGUA DO ATLETA Seria nesta conjuntura adversa que Leônidas da Silva pegaria o bonde da história. Símbolo da proeminência adquirida pelo boleiro em detrimento do sportsman, ele encarnava a mudança destinada a apagar os últimos vestígios da marca refinada, esnobe e excludente que a juventude privilegiada procurara atribuir à prática do esporte inglês, substituindo-a gradativamente por uma feição mais popular do jogo, por uma dimensão mais nacional do futebol, por uma identidade mais ambígua do atleta.
RISCOS SIMBÓLICOS A realização da Copa do Brasil em 1950 viria a se constituir, neste sentido, em uma rara oportunidade. No dia da decisão contra o Uruguai sobreveio o inesperado revés. Foi, então, que os torcedores descobriram os riscos simbólicos envolvidos na tarefa de reimaginar a nação dentro das quatro linhas do campo. As reportagens da crônica esportiva elegiam o goleiro Barbosa e o defensor Bigode como bodes expiatórios, exprimindo a vontade de “descarregar nas costas” dos referidos jogadores os “prejuízos” acarretados pela derrota. Uma chibata moral, eis a sentença proferida no tribunal dos brancos.
A REVOLTA DA CHIBATA Nos anos 1970, por não atender às expectativas normativas suscitadas pelo estereótipo do “bom negro”, Paulo César Lima foi classificado como “jogador-problema”. Responsabilizado pelo fracasso do Brasil na Copa da Alemanha, pleiteava o direito de voltar a vestir a camisa verde e amarela. O rumor de que o banimento tinha o respaldo de um ministro de Estado, não o surpreendia: “Se for, mais uma vez vou ter a certeza de que sou um negro que incomoda muita gente”. E acrescentava: “Não vou ser um negro tímido, quieto, com medo e temor das pessoas”. Dessa maneira, nas páginas de O Estado de S. Paulo, Paulo César esboçava a revolta da chibata no futebol brasileiro. Enquanto Barbosa e Bigode, sem alternativa, suportaram com dignidade o linchamento moral na derrota de 1950, Paulo César contra-atacava os que pretendiam condená-lo pelo insucesso de 1974, reeditando as acusações de “covarde” e de “mercenário” – as mesmas dirigidas a Leônidas no passado. Paulo César, no entanto, assumia, sem ambiguidades, as cores e as causas defendidas pela esquadra dos pretos em todas as esferas da vida social. “Sinto na pele esse racismo subjacente”, revelou certa vez à imprensa francesa: “Isto é, ninguém ousa pronunciar a palavra racismo. Mas posso garantir que ele existe, mesmo na Seleção Brasileira”. Sua ousadia consistiu em pronunciar a palavra interdita no espaço simbólico utilizado pelo discurso oficial para reafirmar o mito da democracia racial.
José Paulo Florenzano é professor de Antropologia da PUC-SP e autor do livro “A Democracia Corinthiana” (2009). Texto adaptado.
Releia o parágrafo 2 do texto 1. Você deve ter percebido que o Paulo César de que fala o texto 2 é o mesmo Paulo César de que fala Nélson Rodrigues no texto 1. Cotejando esses dois textos, marque a opção INCORRETA.