A dor
O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar, apanha e fala. É sobre essa simples constatação que se edifica a complexa justificativa da tortura pela funcionalidade. O que há de terrível nela é sua verdade. O que há de perverso nessa verdade é o sistema lógico que nela se apoia valendo-se da compressão, num juízo aparentemente neutro do conflito entre dois mundos: o do torturador e o de sua vítima. Tudo se reduz à problemática da confissão.
Assim, a tortura pressiona a confissão e triunfa em toda a sua funcionalidade quando submete a vítima. Essa é a hipérbole virtuosa do torturador. Assemelha-se ao ato cirúrgico, extraindo da vítima algo maligno que ela não expeliria sem agressão.
A teoria da funcionalidade da tortura baseia-se numa confusão entre interrogatório e suplício. Num interrogatório há perguntas e respostas. No suplício, o que se busca é a submissão. O “supremo opróbrio” é cometido pelo torturador, não pelo preso. Quando a vítima fala, suas respostas são produto de sua dolorosa submissão à vontade do torturador, e não das perguntas que ele lhe fez. Prova disso está no fato de que nos cárceres soviéticos milhares de presos confessaram coisas que jamais lhes haviam passado pela cabeça, permitindo ao stalinismo construir suas catedrais conspiratórias.
O poder absoluto que o torturador tem de infligir sofrimento à sua vítima transforma-se em elemento de controle sobre seu corpo. No meio da selva amazônica, espancando um caboclo analfabeto que pedia ajuda divina para sustar os padecimentos, um torturador resumiria sua onipotência embutida: “Que Deus que nada, porque Deus aqui é nós mesmo”. A mente insubmissa torna-se vítima de sua carcaça, que é, a um só tempo, repasto do sofrimento e presa do inimigo. “O preso só lastima uma coisa: o ‘diabo’ do corpo continua aguentando”, lembraria o dirigente comunista Marco Antônio Coelho. Ainda que a certa altura a mente prefira a morte à confissão, aquele corpo dolorido se mantém vivo, permitindo o suplício.
(GASPARI, Hélio. A ditadura escancarada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 37-41. Texto
adaptado.)