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Texto
O índio não teve muita sorte na literatura brasileira, depois do Romantismo. Enquanto nas letras hispano-americanas viceja um esplêndido indigenismo pelo século XX adentro, com tantos e tão importantes criadores dedicando-se a transpor o índio para a ficção, no Brasil se podem contar nos dedos das mãos os casos.
Torna a trazer o assunto à baila o aparecimento e grande vendagem de Maíra, romance de Darcy Ribeiro. O renomado antropólogo já tinha em seu acervo de realizações uma respeitável brasiliana, incluindo vários trabalhos sobre os índios, um dos quais, a história de Uirá, fora transformado em filme no início da década de 70. Maíra é, portanto, a primeira incursão do autor pelo épico, a menos que se considere a história de Uirá como uma primeira aproximação ao gênero.
O relato, como o filme, dá conta do trágico percurso de Uirá, da tribo Urubu-Kaapor, no Maranhão deste século, o qual um dia fica iñaron quando, após muitas desgraças comuns ao destino dos índios brasileiros, como fome, espoliação, epidemias, perseguições, perde também um dos filhos.
A palavra tupi iñaron designa um estado de fúria sagrada, associado ao sofrimento excessivo, não deixando de lembrar as famosas fúrias dos heróis gregos: Hércules, uma vez acometido por um desses acessos, enviado pela vingativa Hera, matou, sem o saber, seus três filhos e esposa, tal como vem narrado na tragédia Héracles Furioso, de Eurípedes. Nas Bacantes, do mesmo autor, Agave, fora de si, participa do desmembramento de seu filho adulto, Penteu, rei de Tebas. E talvez o mais formidável exemplo seja o da cólera de Aquiles, que dá nascimento à inteira composição da Ilíada, desencadeada por sua recusa a continuar lutando. Devido à recusa de Aquiles, quase foi perdida a guerra de Troia e, não fosse sua fúria, o poema não teria sido composto.
Em meio ao furacão histórico da fase do capitalismo selvagem no país, quando o acirramento da acumulação leva multinacionais e suas cabeças-de-ponte nacionais a apropriar-se dos mais recônditos confins com vistas ao lucro, encontram-se, estonteados, os índios. O único problema dos Mairum — nome inventado, tribo arquetípica de todas as tribos, povo de Maíra — é como sobreviver e como fazer sua cultura sobreviver, com crescente dificuldade.
O romance inteiro soa como uma lamentação, um carpir sobre o fim de uma civilização das mais admiráveis. Seus trechos mais bem realizados são aqueles nos quais uma espécie de narrador coletivo índio dá conta de sua maneira de ver o mundo, de como compreende e interpreta seus hábitos e tradições; e, o que é mais importante, franqueia para o leitor seu tremendo desejo de sobrevivência e alegria de viver.
A produção e publicação de um romance como esse, agora, mostra como o índio está mais vivo do que nunca em sua conexão com a literatura brasileira. Tampouco deve ser uma coincidência que, neste exato momento, outras ficções, filmes, romances, peças de teatro, novelas de televisão, canções, estejam sendo feitos, todos sobre os índios, todos lutando em defesa de sua preservação para a História. Quando há tanta desconfiança em relação à pulsão destrutiva da civilização ocidental e entre nós é tão escandaloso o capitalismo selvagem, isso pode vir a significar alguma coisa. Talvez uma postura mais cautelosa e menos arrogante, de quem está aprendendo a perceber que outras civilizações encontraram saídas melhores e, sobretudo, não suicidas para males que hoje parecem irremediáveis, como o problema do poder, da proliferação e potenciação dos armamentos, da destruição da natureza, do Estado e de seu aparelho, da igualdade nunca encontrada. A alegoria da moça branca morta ao parir mestiços mortos poderá significar também o caráter heteroletal e autoletal da etnia branca? Pode ser que a importância da civilização indígena esteja, final e penosamente, penetrando na consciência do corpo social
brasileiro.
Walnice Nogueira Galvão. Indianismo revisitado. In: Esboço de figura – Homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 379-89 (com adaptações).
Com relação às ideias desenvolvidas no texto, julgue o item subsecutivo.
Ao afirmar que o “índio não teve muita sorte na literatura brasileira”, a autora indica que a representação literária dos personagens indígenas em romances brasileiros foi marcada pela presença do iñaron, “estado de fúria sagrada, associado ao sofrimento excessivo”.