Haverá uma história da pandemia?
Haverá uma história para contar quando tudo isso acabar? Haverá razão para ouvir essa história e paciência para acompanhar as minúcias de tantas vidas interrompidas? Será narrável a magnitude dessa experiência, tão absoluta e insistente, que de um momento para outro se apoderou do mundo inteiro e não nós poupara tão cedo? Ou preferimos não narrar nada, nos render ao desejo de seguir em frente, de deixar tudo para trás, de esquecer, recalcar, ocultando de nós mesmos uma vivência desoladora e agônica, sem redenção possível?
Respostas a tais perguntas não são fáceis de encontrar, e sobretudo não cabe antecipa-las se ainda estamos tão imersos no presente. Mas o grande ensaísta alemão Walter Benjamin, num de seus textos mais conhecidos, “O narrador", talvez nos ajude a ventilar ideias e alinhavar suspeitas. É ele quem fala de uma crise de experiência que marcaria o nosso tempo. É ele quem afirma, ainda em 1936, que “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. Estaremos cumprindo, nestes anos atípicos, o surpreendente vaticínio de Benjamin? Vivemos agora a culminação da crise, uma carência de palavras que de fato deem conta da experiência ora vivida, que de fato possam nos expressar?
Em breve frase, Benjamin contempla seu maior exemplo para o fim da transmissão das experiências humanas: a situação dos soldados que voltavam mudos da Primeira Guerra Mundial, desprovidos de histórias, “não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”. Os muito livros posteriores em nada redimiriam tal silêncio. O caso é que a nova estratégia de guerra alienava os combatentes, confinados em trincheiras, isolados uns dos outros, sem a possibilidade de acompanhar de perto a vastidão dos acontecimentos. Dali, nada veem, tudo ouvem e estremecem. São parte inerte de uma “paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”, nas palavras de Benjamin.
(Adaptado de: FUKS, Julián. Lembramos do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 61-62)