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Ponto de Exclamação Atenção: Esta questão foi anulada pela banca.

Texto

 

A Pata da Gazela

 

Horácio de Almeida, o nosso leão, voltou a casa à hora do costume, quatro da tarde.

 

Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensável ao alfaiate; as anedotas do Alcazar na noite antecedente; a crônica anacreôntica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de maledicência, que é a pimenta social; todas essas ocupações importantes, que absorvem a vida do leão, distraíram Horácio a ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do paletó.

 

Como admitir que um príncipe da moda não aproveitasse a aventura do carro, para sobre ela bordar um romance de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admirável; e seria incompreensível se não fosse a circunstância de ter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brasil, a quem o nosso leão arrastava... ia dizer a asa, mas isso seria anacronismo; dizia-se no tempo em que os leões se chamavam galos; hoje deve dizer-se arrastar a juba; é mais bonito e indica mais submissão. Arrastar a asa é enfunar-se; arrastar a juba é prostrar-se.

 

Foi só quando, recostado em sua otomana, descansava para o jantar, que Horácio, procurando a carteira de charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objeto. Teve então curiosidade de examiná-lo; sabia o que era; na ocasião de apanhá-lo reconhecera o pé de uma botina de senhora; mas não fizera grande reparo.

 

Agora, porém, que de novo o tinha diante dos olhos, a sós em seu aposento e despreocupado da ideia de o restituir, Horácio achou o objeto digno de séria atenção; e, aproximando-se da janela, começou um exame consciencioso.

 

Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma pérola, faceira irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquês.

 

Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada e o esfolamento da sola indicavam bastante uso.

 

Se fosse um calçado em folha, saído da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso leão, habituado não só a ver, como a calçar, as obras-primas de Milliès e Campás. Talvez reparando muito naquela peça que tinha nas mãos, notasse maior elegância no corte e um apuro escrupuloso na execução; porém, mais natural seria escapar-lhe essa mínima circunstância.

 

Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma beleza, o gentil companheiro de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estufava mostrando o firme relevo do pezinho arqueado. Na sola se desenhava a curva graciosa da planta sutil, que só nas extremidades beijava o chão, como o silfo que frisa a superfície do lago com a ponta das asas.

 

Há um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrância voluptuosa que se exala ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor volatilizado. A botina estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lírio, derramava, como a flor, ondas suaves.

 

O mancebo colocara longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. Não havia aí o menor laivo de essência artificial preparada pela arte do perfumista; era a pura exalação de uma cútis acetinada, esse hálito de saúde que perspira através da fina e macia tez, e como através das pétalas de uma rosa.

 

De repente uma ideia perpassou no espírito do moço que o fez estremecer. Essa botina grácil, em que mal caberia sua mão aristocrática, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, não podia ter um número maior do que o de seus anos, vinte e nove!

 

“Será de uma menina!” murmurou ele um tanto desconsolado.

 

Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio.

 

“É de moça, é de mulher!” murmurou ele. “Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de Édipo é uma verdade eterna: no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre quatro pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula, mas aconchega-se mais ao solo, de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época da expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se: é a árvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao céu os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flores, que nós chamamos paixões. Na velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço, deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé e calça esse coturno da mais triste das tragédias humanas, a decrepitude.”

 

ALENCAR, José de. A Pata da Gazela. Rio de Janeiro: Ática, 1995.

 

“(...) Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensável ao alfaiate; as anedotas do Alcazar na noite antecedente; a crônica anacreôntica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de maledicência, que é a pimenta social; todas essas ocupações importantes, que absorvem a vida do leão, distraíram Horácio a ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do paletó”.

 

A palavra todas, como destacado no trecho acima, faz referência, essencialmente, aos termos



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