Enunciados de questões e informações de concursos
Ela andava reclamando da forma como ele fechava as portas, “Não bate! Vira a maçaneta e puxa!”, ele vinha implicando com o tempo que ela mantinha aberta a geladeira, “Pensa antes no que você quer, depois abre!”. Quando ela dirigia, ele ia cantando as marchas: “Quarta!”, “Terceira!”, “Quinta! Oitenta... Bota a quinta!”. Quando ele dirigia, ela desdenhava dos caminhos: “Por que cê tá subindo a Augusta?! Pega a Nove de Julho!”. “Não, Rebouças não!”. No dia em que discutiram feio a respeito do lado certo para começar a descascar uma mexerica – “Por cima! Aquele engruvinhadinho tá ali pra isso!” versus “Por baixo! É uma dedada só!” –, decidiram que era preciso diminuir a convivência.
Passaram a jantar em horários diferentes. A ler cada um numa poltrona. Às terças, ela ia ao bar com as amigas. Às quintas, ele jogava futebol. Melhorou, mas não resolveu. Ele resmungava do cheiro de fritura com que ela se deitava na cama. Ela o reprimia pelas roupas suadas, espalhadas no banheiro. Decidiram, então, dormir em quartos separados. À noite, se despediam e iam cada um para um lado do corredor. Ele assistia à série dele, ela via a série dela. Às vezes, até viam a mesma série, mas cada um botando legenda na língua que bem entendesse – antes, ela sempre queria pôr em inglês, “pra praticar”, ele sempre queria pôr em português, “pra entender”: acabavam nem praticando nem entendendo, mas discutindo. Mas, mesmo em quartos separados, as rusgas continuavam.
A solução, acreditaram, era morar cada um numa casa. Voltariam a ser namorados, cada um com o seu mundinho, como na época da faculdade. Foi bom por um tempo, mas – de novo – não resolveu. Ele atrasava pro cinema. Ela discordava do restaurante. Na casa dele, não tinha os cremes dela. Na casa dela, não tinha as lentes dele.
Um belo dia tiveram de admitir que a convivência era impossível. Sempre haveria algum incômodo, algum detalhe, algum hábito de um a pinicar a paciência do outro. A saída era se separar. A distância acabou com os velhos problemas, mas criou um novo, imenso: eles se amavam, sofriam vivendo sozinhos. Não que quisessem voltar. Sabiam que de briguinha em briguinha, de discussão em discussão, o caldo entornaria, mais uma vez.
Então chegaram, enfim, à conclusão de qual seria a única forma da relação funcionar, sem picuinha nem saudade: nunca terem se conhecido. Se apenas imaginassem um ao outro, amantes ideais, num mundo sem marchas, sem Rebouças, sem mexericas, sem legendas, sem geladeiras, sem cremes e sem lentes, seriam felizes para sempre.
(Antônio Prata, “O Engruvinhado da Mexerica”. Folha de S.Paulo, 15.11.2015. Adaptado)
No trecho ... de discussão em discussão, o caldo entornaria... –, a expressão destacada foi empregada em sentido figurado, assim como em