De quem são os meninos de rua?
"Eu, na rua, com pressa, e o menino seguro no meu braço, falou qualquer coisa que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que ele estava pedindo dinheiro. Não estava. Queria saber a hora. Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era um Menino De Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.
Ouvindo essas expressões tem-se a impressão de que as coisas se passam muito naturalmente, uns nascendo De Família, outros nascendo De Rua. Como se a rua, e não uma família, não um pai e uma mãe, ou mesmo apenas uma mãe os tivesse gerado, sendo eles filhos diretos dos paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das outras crianças, e excluídos das preocupações que temos com elas. E por isso, talvez, que, se vemos uma criança bem-vestida chorando sozinha num shopping center ou num supermercado, logo nos cercamos protetores, perguntando se está perdida, ou precisando de alguma coisa. Mas se vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com uma caixa de chicletes na mão, enrugamos a primeira no carro e nos afastamos pensando vagamente no seu abandono.
Na verdade, não existem meninos DE rua. Existem meninos NA rua. E toda vez que um menino está NA rua é porque alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam. Resta ver quem os põe na rua. E por quê.
Quem leva nossas crianças ao abandono? Quando dizemos "crianças abandonadas" subentendemos que foram abandonadas pela família, pelos pais. E, embora penalizados, circunscrevemos o problema ao âmbito familiar, de uma família gigantesca e generalizada, a qual não pertencemos e com a qual não queremos nos meter. Apaziguamos assim nossa consciência, entregando-as a um abrigo e tirando de atribuir esse abandono ao governo, e à responsabilidade que nos pertence. A hora chegou, portanto, de irmos ao bosque, buscar as crianças brasileiras que ali foram deixadas."
(Adaptado de COLASANTI, Marina. A Casa das Palavras. São Paulo: Ática, 2002. Fragmento.)