Texto 1
Um novo A B C
Aquela velha carta de A B C dava arrepios. Três faixas verticais borravam a capa, duras, antipáticas; e, fugindo a elas, encontrávamos num papel de embrulho o alfabeto, sílabas, frases soltas e afinal máximas sisudas.
Suportávamos esses horrores como um castigo e inutilizávamos as folhas percorridas, esperando sempre que as coisas melhorassem. Engano: as letras eram pequeninas e feias; o exercício da soletração, cantado, embrutecia a gente; os provérbios, os graves conselhos morais ficavam impenetráveis, apesar dos esforços dos mestres arreliados, dos puxavantes de orelhas e da palmatória.
“A preguiça é a chave da pobreza”, afirmava-se ali. Que espécie de chave seria aquela? Aos seis anos, eu e os meus companheiros de infelicidade escolar, quase todos pobres, não conhecíamos a pobreza pelo nome e tínhamos poucas chaves, de gavetas, de armários e de portas. Chave de pobreza para uma criança de seis anos é terrível.
Nessa medonha carta, que rasgávamos com prazer, salvam-se algumas linhas. “Paulina mastigou pimenta.” Bem. Conhecíamos pimenta e achávamos natural que a língua de Paulina estivesse ardendo. Mas que teria acontecido depois? Essa história contada em três palavras não nos satisfazia, precisávamos saber mais alguma coisa a respeito da aventura de Paulina.
O que ofereciam, porém, à nossa curiosidade infantil eram conceitos idiotas: “Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém”. Ter-te-ão! Esse Terteão para mim era um homem, e nunca pude compreender o que ele fazia na última página do odioso folheto. Éramos realmente uns pirralhos bastante desgraçados.
Marques Rebelo enviou-me há dias um A B C novo. Recebendo-o, lembrei-me com amargura da chave da pobreza e do Terteão, que ainda circulam no interior.
A capa da brochura que hoje me aparece tem uns balões — e logo aí o futuro cidadão aprende algumas letras. Na primeira folha, em tabuleiros de xadrez de casas brancas e vermelhas, procurou-se a melhor maneira de impingir aos inocentes essa coisa desagradável que é o alfabeto. O resto do livro encerra pedaços de vida de um casal de crianças. João e Maria regam flores, bebem leite, brincam na praia, jogam bola, passeiam em bicicleta, nadam, apanham legumes, vão ao Jardim Zoológico.
Tudo isso é dito em poucas palavras, como na história de Paulina, que mastigava pimentas na velha carta de A B C. Mas enquanto ali o caso se narrava com letras miúdas e safadas, em papel de embrulho, aqui as brincadeiras e as ocupações das personagens se contam em bonitas legendas e principalmente em desenhos cheios de pormenores que a narração curta não poderia conter.
(............................................................) Abril, 1938.
(Graciliano Ramos. Linhas tortas. Obra póstuma. p.174-175.)