TEXTO 1
SEQUÊNCIAS
Eu era pequena. A cozinheira Lizarda
tinha nos levado ao mercado, minha
[irmã, eu.
Passava um homem com um abacate
[na mão e eu inconsciente:
“Ome, me dá esse abacate...”
O homem me entregou a fruta
[madura.
Minha irmã, de pronto: “vou contar pra mãe
[que ocê pediu abacate na rua”.
Eu voltava trocando as pernas bambas.
Meus medos crescidos, enormes...
A denúncia confirmada, o auto, a
[comprovação do delito.
O impulso materno... consequência obscura
[da escravidão passada,
o ranço dos castigos corporais.
Eu, aos gritos, esperneando.
O abacate esmagado, pisado, me sujando
[toda.
Durante muitos anos minha repugnância por
[esta fruta
trazendo a recordação permanente do castigo.
Sentia, sem definir, a recreação dos que
[ficaram de fora,
assistentes, acusadores.
Nada mais aprazível no tempo, do que
[presenciar a criança indefesa
espernear numa coça de chineladas.
“É pra seu bem”, diziam, “doutra vez não pedi
[fruita na rua”.
(Cora Coralina. Melhores poemas. p. 158.)