Enunciados de questões e informações de concursos
O texto abaixo servirá de base para a questão.
O avesso da tecnologia
FILOSOFIA DA MENTE
*João de Fernandes Teixeira
Professor na UNESP, na UFSCAR e na PUC-SP
Recentemente, li uma entrevista de Tim Berners-Lee, criador da internet e considerado um dos maiores gênios da computação do século XX, na qual ele declarou que a internet precisa ser reformada. Berners-Lee ressalta que um dos problemas é o excesso de informação que, atualmente, impede as pessoas de se comunicarem. Todos falam, mas ninguém ouve. Descartamos, sem ler, uma grande quantidade de informação que nos chega pelo WhatsApp e pelas redes sociais, sem nos darmos sequer ao trabalho de lermos suas primeiras linhas. Como resultado, muitas vezes as pessoas se comportam, nas conversas, como se fossem surdas e perguntam pela mesma informação em vários momentos, apesar de a termos repetido várias vezes. O excesso de informação compromete a atenção e cria uma barreira que, muitas vezes, impede as pessoas de selecionarem as informações mais importantes, que são descartadas, de forma despercebida em meio a um fluxo incessante. Mas será esse o único problema a ser enfrentado por uma reforma da internet?
Um de seus pontos mais vulneráveis é a perda do controle sobre informações privadas que são apropriadas por grandes empresas a partir dos rastros digitais involuntariamente deixados pelos internautas. A simples visita a sites, a escolha de filmes ou músicas nos serviços de streaming e as compras feitas online são reveladoras do perfil de qualquer usuário da internet. Como alternativa, Berners-Lee está desenvolvendo o SOLlD, um dispositivo que armazenará essas informações e garantirá que elas se mantenham sob o controle de quem as produz.
O derramamento de informações pessoais como resultado do ataque de hackers seria um grande desastre ecológico. Ele causaria uma enorme desorganização social que não se limitaria apenas ao hackeamento de contas bancárias, mas também de dados institucionais e governamentais que passariam a circular livremente. Seria a guerra de todos contra todos e as sociedades humanas dificilmente se recomporiam de um desastre dessas proporções. Os gigantes das redes sociais e do armazenamento de dados como o Facebook e o Instagram e outras empresas bilionárias passariam por uma crise de confiança irreversível que derrubaria, dramaticamente, seu valor nas Bolsas de Valores, arrastando muitas outras e criando um caos econômico. O problema não é apenas de segurança nacional, mas de segurança financeira internacional. Uma amostra do que pode ocorrer foi o episódio das fake news na última eleição presidencial nos Estados Unidos.
Essas empresas enfrentam uma série de problemas que, até agora, têm sido habilmente mantidos ocultos nos seus bastidores. Um deles é a crescente necessidade energética criada pela expansão da internet. Poucos de nós sabemos que a necessidade de recarregar as baterias de um único smartphone consome, anualmente, o equivalente em eletricidade para manter duas grandes geladeiras domésticas permanentemente ligadas. Manter os servidores da Google ligados e resfriados consome o equivalente à iluminação de uma cidade como Los Angeles. Recentemente, esses servidores foram acomodados no fundo do oceano, como uma tentativa de diminuir os custos de refrigeração e aumentar sua segurança.
A chegada da IoT ou internet das coisas vai exigir uma nova expansão da internet e mais gastos com eletricidade, que levará a um aumento da emissão de dióxido de carbono na atmosfera, contribuindo para o aquecimento global e o descontrole do clima. Atualmente a emissão de dióxido de carbono que resulta do uso e manutenção dos dispositivos digitais equivale à emissão produzida pela aviação comercial no mundo inteiro.
Uma maneira de diminuir o consumo de eletricidade necessário para manter os servidores em funcionamento seria limitar o número de imagens transmitidas na rede. Mas ninguém está disposto a estabelecer esse tipo de restrição, sobretudo depois que se descobriu o papel fundamental das imagens na propaganda. As imagens também induzem o fanatismo político e religioso com mais facilidade. O resultado de uma web cada vez mais imagética é a enxurrada de poluição mental, a nova invenção do século XXI. Mas haverá como reverter essa situação?
O primeiro passo consiste em percebermos que não dependemos inteiramente dessas tecnologias. Elas são importantes, mas talvez não sejam prioritárias para a organização das sociedades. Em outras palavras, a vida é possível sem elas. Da mesma forma que já ocorreu na indústria alimentar, é possível traçar caminhos alternativos. Nas últimas décadas, muitas pessoas se inclinaram a rejeitar a comida industrializada e optaram pela volta dos alimentos orgânicos. É possível que o mesmo ocorra com as tecnologias digitais e, novas formas de organização das sociedades e das comunicações, menos totalizantes, comecem, pouco a pouco, a substituir o império da digitalização.
Muitas pessoas estão, voluntariamente, abandonando as redes sociais e procurando novas formas de agrupamento e de convivência. Isso inclui a retomada da leitura, do silêncio e da solidão, atualmente abandonados pela necessidade de responder a estímulos digitais incessantes.
Da mesma forma que é possível balancear a alimentação orgânica com a industrializada, poderemos, nos próximos anos, buscar uma relação com as tecnologias digitais que não nos torne mais reféns delas. Precisamos voltar a ditar o ritmo de nossas vidas.
TEIXEIRA, João de Fernandes. O avesso da tecnologia.
Filosofia Ciência e Vida. São Paulo, Editora Escala, Ed. 147, fev., 2019. p. 71-73. [Adaptado].
Sobre a organização dos parágrafos do texto: