Defender a língua é, de um modo geral, uma tarefa ambígua e até certo ponto inútil. Mas também é quase inútil e ambíguo dar conselhos aos jovens de uma perspectiva adulta e, no entanto, todo o adulto cumpre o que julga ser de seu dever. (…) no que se refere à língua o choque ou oposição situam-se normalmente na linha divisória do novo e do antigo. Mas fixar no antigo a norma para o atual obrigaria esse antigo (…) a recorrer a um mais antigo até ao limite das origens da língua.
(…) Que se imagine um bom caturra do século XXIII em face de uma transgressão de hoje que o uso venha a consagrar. Naturalmente a valorizaria justamente pela consagração de tal uso, emendando por ela as transgressões de então. Assim a própria língua, como ser vivo que é, decidirá o que lhe importa assimilar ou recusar. Porque a inúmeros giros de frase e vocábulos a língua mastiga-os e deita-os fora. E a outros os absorve e integra-os no seu modo de ser. (…) Hoje, que a facilidade de comunicação é total, compreendemos como é inglório o combate contra a infecção. Ela é menos, aliás, também por isso, uma fatalidade que se sofre do que um cosmopolitismo que se procura.
(…) A língua viva, como o jovem, realiza-se no equilíbrio ou no confronto de duas forças que o dinamizam — a da regra e a da infração. Há casos em que o erro é evidente e assim quem nele persiste é excluído do convívio geral. (…) E, todavia, algo de fascinante (direi de «útil»?) há, apesar de tudo, nessa marginalidade. Ela faz-nos ao menos propedeuticamente relativizar o que pressupomos como absoluto, ela apela para a transgressão que é uma voz audível no marasmo e na rotina, ela compõe a diversificação humana, ampliando lhe o espectro da sua realidade. E só quando o crime a limite nós a recusamos drasticamente. (…)
(Virgílio Ferreira. in Estão a Assassinar o Português. Texto adaptado)