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Texto 3 para responder à questão.

 

Seriam porventura dez horas da noite...

 

Desde muitos dias os jornais vinham polindo a curiosidade pública, estufados de notícias e reclamos de festa. O Clube Automobilístico dava o seu primeiro grande baile. Tinham vindo de Londres as marcas do cotilhão e corria que as prendas seriam de sublimado gosto e valor. Os restaurantes anunciavam orgíacos revelhões de Natal. Os grêmios carnavalescos agitavam-se.

 

Seriam porventura dez horas da noite quando esse homem entrou na praça Antônio Prado. Trazia uma pequena mala de viagem. Chegara sem dúvida de longe e denunciava cansaço e tédio. Sírio ou judeu? Magro, meão na altura, dum moreno doentio abria admirativamente os olhos molhados de tristeza e calmos como um bálsamo. Barba dura sem trato. Os lábios emoldurados no crespo dos cabelos moviam-se como se rezassem. O ombro direito mais baixo que o outro parecia suportar forte peso e quem lhe visse as costas das mãos notara duas cicatrizes como feitas por balas. Fraque escuro, bastante velho. Chapéu gasto dum negro oscilante.

 

Desanimava. Já se retirara de muitos hotéis sempre batido pela mesma negativa: — Que se há-de fazer! Não há mais quarto!


Alcançada a praça o judeu estacou. Pôs no chão a maleta e recostado a um poste mirou o vaivém. O povo comprimia-se. Erravam maltrapilhos aos grupos conversando alto. Os burgueses passavam esmerados no trajar. No ambiente iluminado dos automóveis esplendiam os peitilhos e as carnes desnudadas e aos cachos as mulheres-da-vida roçavam pela multidão, bamboleando-se, olhos pintados, lábios incrustados de carmim. Boiando no espaço estrias de odores sensuais.


O homem olhava e olhava. Parecia admiradíssimo.


Por várias vezes fez o gesto de tirar o chapéu mas a timidez dolorosa gelava-lhe o movimento. Continuava a olhar.

 

— Vais ao baile do Clube?
— Não arranjei convite. Você vai?
— Onde irás hoje?
— Como não! Toda São Paulo estará lá.
— Ao réveillon do Hotel Sportsman.
— Vamos ao Trianon!
— Por que não vens comigo à casa dos Marques? Há lá um Souper-rose.
— Impossível.
— Por quê?
— Não Posso. Vou ter com a Amélia.
— Ah...

 

Tirando respeitoso o chapéu, o oriental dirigiu-se por fim ao homem que dissera “ir ter com a Amélia” e perguntou-lhe com uma voz tão suave como os olhos — caíam-lhe os cabelos pelas orelhas, pelo colarinho:

 

— O senhor vai sem dúvida para o seu lar...

 

Decerto um louco. Não, bêbedo apenas. O outro deu de ombros. Descartou-se:

 

— Não.
— Mas... e o senhor poderia informar-me... não é hoje noite de Natal?...
— Parece. (E sorria.) Estamos a 24 de dezembro.
— Mas...

 

O homem da Amélia tocara no chapéu e partira. Desolação, no sacudir lento da cabeça. Agarrando a maleta o judeu recomeçou a andar. Tomou pela rua de São Bento, venceu o último gomo da rua Direita, atingiu o Viaduto. A vista era maravilhosa.

 

ANDRADE, Mário de. Conto de Natal. O Melhor de Mário de Andrade: contos e crônicas (Coleção O melhor de).

Nova Fronteira. Edição do Kindle, com adaptações

 

No que tange às ideias, à forma e aos sentidos do texto, julgue (C ou E) o item a seguir.

 

Observa-se, na descrição em destaque, uma crítica à aparência das mulheres presentes na praça, o que fica explícito no emprego do diminutivo  no vocábulo “peitilhos”.



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