A gastronomia construída sobre fake news
Você provavelmente já escutou que a feijoada brasileira foi criada por trabalhadores escravizados, com os restos de carne que a casa-grande lhes destinava: orelha, rabo e pé de porco.
Balela. Papo furado. Invenção sem pé (de porco?) nem cabeça. Os ricos daqueles tempos só comiam lombinho fresco no dia do abate do animal. As carnes restantes eram salgadas e defumadas para consumo futuro, e aí se incluíam as partes que hoje consideram-se inferiores.
Não sobrava carne alguma para os escravos, essa é a verdade.
Há décadas que ouço e leio a refutação dessa lenda da feijoada, mas ela subsiste. Volta e meia aparece um chef de cozinha ou comunicador propagando fake news sobre nosso prato nacional.
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Tirar informação da própria orelha – o orifício permitido nesta leitura familiar – rende histórias fabulosas, bem mais empolgantes do que a realidade.
Esta, por sua vez, tem nuances que dificultam a construção de uma historinha palatável. Também é cheia de lacunas que impedem a montagem completa do quadro. Faltam muitas peças do quebra-cabeça.
Se reconstituir a sequência de fatos de uma guerra fartamente documentada já é dificílimo, imagine descobrir o que se passava nas cozinhas habitadas por gente analfabeta.
NOGUEIRA, Marcos. A gastronomia construída sobre fake news. Folha de São Paulo, 2024.