Texto I
O Sistema
O pensar é a tentação-mor dos insones ou ao menos dos insones pensantes
Thou shall be cursed1, proferiu um deus à estirpe dos insones, sabe-se lá por que arcaico crime por eles cometido. Só podendo dormir ao amanhecer, o insone assemelha-se ao vampiro. Irmanados pela mesma maldição. E, como o vampiro, o insone também é uma espécie de imortal. Jorge Luis Borges dizia que imortalidade seria um pesadelo: não poder morrer nunca, estar condenado a viver eternamente. Mas num pesadelo já se está descansando, dormindo, apesar de sua inquietude. A imortalidade é antes como a insônia: estar fatigado, do dia como da vida, querer dormir, mas estar condenado a permanecer desperto, vigilante – até quando? O insone é um imortal de olheiras.
A insônia é um sistema, e, como em todo sistema, nesse também há alguns pontos críticos. O momento mais temido pelo insone, aquele que ele reluta em encontrar, sem no entanto assumir esse receio – assunção que despertaria fatalmente as forças da maldição –, é a hora de ficar a sós com a voz de dentro. É o momento em que é preciso fechar o livro, apagar o abajur, desligar a televisão, interromper a conversa, em suma, o que quer que esteja protegendo o insone de si mesmo, de ser entregue ao seu próprio pensamento. Pois a maldição só tem a capacidade de se instalar, como certos vírus que não sobrevivem fora do organismo, nos circuitos de pensamento do insone. É nessa “voz de dentro”, como um filósofo definiu a consciência, que habitam os demônios da insônia.
Apagar a luz, dizer “boa noite” à pessoa do lado, é entrar nessa zona temível em que qualquer movimento em falso pode acordar a maldição e ativar o sistema. É por isso que alguns insones criam o hábito de dormir com a TV ligada: a voz de fora é impermeável, um escudo contra os demônios. Durante muito tempo só pude dormir assim. Escolhia um filme desinteressante e colocava o volume num nível baixo, na exata zona média entre a minha voz de dentro e a voz de fora, de modo que as duas juntas formavam um rumor, um murmúrio indiscernível, uma linguagem escura que me relaxava, entorpecia e afinal me esquecia. (...)
BOSCO, Francisco. In: O Globo, 19 maio 2010. 1Vós sereis amaldiçoados.