O GÊNERO DA DOCÊNCIA
Se as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros (e também os constituem), isso significa que essas instituições e práticas não somente “fabricam” os sujeitos como também são, elas próprias, produzidas (ou engendradas) por representações de gênero, bem como por representações étnicas, sexuais, de classe, etc. De certo modo poderíamos dizer que essas instituições têm gênero, classe, raça. Sendo assim, qual o gênero da escola?
Ora, respondem imediatamente alguns/as, a escola é feminina, porque é, primordialmente, um lugar de atuação de mulheres — elas organizam e ocupam o espaço, elas são as professoras; a atividade escolar é marcada pelo cuidado, pela vigilância e pela educação, tarefas tradicionalmente femininas. Além disso, os discursos pedagógicos (as teorias, a legislação, a normalização) buscam demonstrar que as relações e as práticas escolares devem se aproximar das relações familiares, devem estar embasadas em afeto e confiança, devem conquistar a adesão e o engajamento dos/as estudantes em seu próprio processo de formação. Em tais relações e práticas, a ação das agentes educativas deve guardar, pois, semelhanças com a ação das mulheres no lar, como educadoras de crianças ou adolescentes.
Ao contrário, dizem outras/os, a escola é masculina, pois ali se lida, fundamentalmente, com o conhecimento — e esse conhecimento foi historicamente produzido pelos homens. A escola não trata de qualquer conhecimento, ela lida, como afirma Jean-Claude Forquin (1993, p. 11), com alguns aspectos da cultura que foram selecionados por serem reconhecidos como podendo ou devendo dar lugar a uma transmissão deliberada e mais ou menos institucionalizada"— enfim, aquilo que uma dada sociedade considera digno de integrar o currículo. Portanto, é possível argumentar que, ainda que as agentes do ensino possam ser mulheres, elas se ocupam de um universo marcadamente masculino — não apenas porque as diferentes disciplinas escolares se construíram pela ótica dos homens, mas porque a seleção, a produção e a transmissão dos conhecimentos (os programas, os livros, as estatísticas, os mapas; as questões, as hipóteses e os métodos de investigação "científicos" e válidos; a linguagem e a forma de apresentação dos saberes) são masculinos.
Difícil decidir qual a resposta mais adequada ou mais completa. Ambas as argumentações apelam para noções com as quais usualmente concordamos e que reconhecemos nas nossas práticas escolares. O que fica evidente, sem dúvida, é que a escola é atravessada pelos gêneros; é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino.
Na verdade isso pode ser estendido para qualquer instituição social. No entanto, nosso olhar se volta especialmente para a escola não apenas devido à temática deste livro, mas porque, nas sociedades urbanas, historicamente ela veio ganhando um lugar especial dentre as demais instâncias e instituições sociais. Alvo de atenção dos religiosos, dos estados e das famílias, ela foi se constituindo como necessária para formação de meninos e meninas, ao mesmo tempo em que deslocava a importância de outros espaços formadores. À escola foi atribuída, em diferentes momentos, a produção do cristão; do cidadão responsável; dos homens e das mulheres virtuosos/as; das elites condutoras; do povo sadio e operoso; etc. Certamente não se esperava que ela desempenhasse sozinha essas tarefas, embora, com muita frequência, elas lhe fossem explícita e pontualmente endereçadas.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade
e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 88-90.