Substantivo versus adjetivo
Além das denúncias de tráfico de influência, lavagem de dólares, prevaricação, sonegação de impostos, nepotismo, fisiologismo e clientelismo político, outro tema que se encontra no centro das discussões éticas e políticas no país é o papel da imprensa.
Acusam, do lado de lá, a imprensa, entre outras coisas, de sensacionalista, injusta, partidária, tendenciosa, integrante do ficcional sindicato do golpe ou daqueles segmentos interessados em destruir as instituições, como a presidência da República.
Para melhor avaliar o que ocorre hoje nessa relação entre imprensa e governo, os jornalistas, cientistas políticos, sociólogos e historiadores de amanhã terão mais isenção e muito o que pesquisar. Hoje, estamos todos envolvidos como profissionais, como cidadãos.
O senso profissional do jornalista mistura-se com sentimentos difusos de patriotismo, ódio, raiva, impotência, esperança, descrença. O momento apresenta um quadro rico em detalhes carregados de tensão. O conflito manifesta uma semântica, mediante a qual se tenta conquistar a opinião pública.
Os acusados, alvos de denúncias substantivas, partem para o contra-ataque, na tentativa de atingir seus acusadores com frases adjetivas. De preferência, desabonadoras. A tática não é nova. Quando Nero procurou alguém para responsabilizar pelo incêndio de Roma, não titubeou. Escolheu os cristãos, vistos pelo imperador e sua corte como inimigos políticos. Para preservar a instituição romana e a si próprio, Nero transferiu sua loucura para o suposto ato dos cristãos.
Sempre se pode colher na história entre dominados e dominadores, governantes e súditos, situação e oposição, instituição pública governamental e imprensa, entre outras divisões maniqueístas, condutas assemelhadas. Na defensiva, quem tem o poder procura, diante de acusações substantivas, desqualificar os inimigos com adjetivos.
Na revelação da divergência, do conflito e da ira pela palavra, procura-se esconder o que mais se manifesta na realidade do discurso: a verdade. Aí, a imprensa apresenta-se como veículo mais eficaz para distribuir as informações e as interpretações factuais. Sem os jornais independentes, há o discurso político surdo. Uma contradição que nega a essência e a natureza política, ou seja, o caráter público.
Com erros, até grandes, é a imprensa o canal mais eficiente para revelar as verdades que se escondem em tantos discursos, cenas de TV, papéis burocráticos, atos simbolicamente autoritários e totalitários. A imprensa, ao contrário do discurso político, em que predomina a locução adjetiva, tem por fundamento a revelação substantiva do cotidiano.
Marcel Cheida. In: Folha de S. Paulo, 26/7/1992 (com adaptações).