As três pragas
São muitas as pragas que nos afligem. No momento estou pensando em três: a censura prévia, o atestado de ideologia e a tortura policial. Cada uma delas, isoladamente, bastaria para desmentir qualquer pretensão utópica de que estejamos vivendo em um Estado de Direito e não de Fato. Juntas, nos aproximamos dos regimes totalitários, embora envolvidos nessa atmosfera tíbia de paternalismo oficial que, historicamente, tem configurado os nossos sucessivos regimes políticos. Especialmente o imperial e o republicano.
A censura prévia é o menos censurado dos nossos meios de comunicação. Vive às claras, batendo suas gemas às escondidas. Não há dia em que um jornal não apareça com largos espaços em branco, mostrando que, pelo menos nisso, a censura já não usa máscaras. Aliás, essa passagem, do disfarce ao disparete, é um traço que distingue essas três pragas, que de momento às escâncaras nos atacam. É certo que existem ainda exemplares humanos anacrônicos, para quem essas três expressões, censura prévia, atestado de ideologia e tortura policial, fazem tremer as fibras mais delicadas de suas sensibilidades. Mas de tal forma se tornaram vulgares esses três processos inumanos de desumanizar os homens e as instituições, que já se fala correntemente dessas pestes como se fossem inevitáveis.
Ora, as palavras também criam os fatos. Não se limitam a dar-lhes nomes. A familiaridade com que hoje falamos desses três carcinomas morais é um triste índice da degradação da nossa vida cotidiana. Falai no mal,aparelhai o pau, dizia a nossa velha sabedoria popular. À custa de nos habituarmos ao uso cotidiano da censura prévia, do atestado de ideologia e das torturas policiais, acabamos por não sentir os monstros físicos e morais que elas representam. Acabamos cúmplices dos próprios males que tentamos denunciar. Por outro lado, não basta o silêncio para que desapareçam. São tão terríveis que, falados ou silenciados, nos estão corrompendo a cada passo.
A censura prévia nos parecia, outrora, como a morte ou a loteria, que só atacava ou beneficiava os vizinhos. Hoje é nosso pão cotidiano, sem esperança de correção. Toda semana recebemos comunicação derevistas que têm dezenas de textos suprimidos. Numa delas, por exemplo, nada menos de 25 matérias diferentes, num total de 197 laudas, foram integralmente vetadas. Foram vetadas a nota do Conselho Indigenista Misssionário; o pronunciamento dos jesuítas da Prelazia de Diamantino; a nota da Conferência dos Religiosos do Brasil; e assim por diante. É um quadro assustador do estado de obscurantismo cultural para que estamoscaminhando. Ou nele já vivendo. Como o demonstra a interdição à última hora da peça de Antônio Bivar, na comemoração do 50º aniversário teatral do grande artista Ziembinski.
Quanto ao atestado de ideologia, tenho recebido várias cartas de protesto por essa mórbida aplicação do thought control, que nos parecia outrora um mal que nunca nos afetaria. Sei de um caso típico recente. Um grande professor de História, e um dos nossos maiores historiadores vivos, foi convidado para assumir, por contrato, a cadeira de sua especialidade, em uma de nossas universidades federais. Aceitos os termos do acordo, surgiu a exigência final do atestado de ideologia, pois, como se sabe in cauda venenum. Forçado pela necessidade, teve de sujeitar-se à humilhação de um rigoroso inquérito sobre suas ideias e seus antecedentes.
Esse é o estado a que está sendo reduzida a nossa cultura superior. Quando me lembro do fervor com que um Raul Leitão da Cunha se pôs em campo, durante a Constituinte de 1934, para ser incorporado à nova Constituição o princípio da autonomia universitária, e vejo que hoje, nem alunos nem professores têm qualquer espécie de autonomia real, sob a ameaça constante do fechamento de diretórios acadêmicos e de demissões sumárias, é que sinto no fundo da alma o que perdemos de liberdade para a nossa cultura. Naquele momento, o que a Revolução de 30 pensava trazer à nossa educação, era precisamente a abertura do espírito da juventude. Era permitir o exercício de um professorado culto e livre, para travar com as novas gerações um diálogo, não de surdos e mudos, dirigidos pela palmatória oficial ou pelo fantasma sempre presente da Segurança Nacional, e sim, de permuta recíproca, de pesquisa e de estudo, dentro de universidades realmente dignas desse nome. Hoje, o que se pretende é bitolar as inteligências e impedir o debate de ideias para alcançar as falsas unanimidades.
Quanto à mais trágica e injustificável das três chagas que ameaçam tetanizar o nosso organismo nacional, a tortura policial, por mais universal que seja, mesmo em países democráticos, como o demonstrou a denúncia famosa do Time, essa extensão do mal não nos escusa de permitir que se introduza ou se reintroduza, em nossos costumes policiais, essa herança ignominiosa da Inquisição. Quando me lembro do nosso tempo de estudantes de Direito Penal, há apenas meio século, e confronto o que ouvíamos de um Lima Drummond e o que vemos ser admitido e praticado em nossa repressão à criminalidade, parece que realmente já não vivemos no mesmo país, não falamos a mesma língua, não partilhamos dos mesmos sentimentos.
Não temos, porém, o direito de desesperar. Não há pragas incuráveis. Os últimos acontecimentos, inclusive as últimas eleições, quaisquer que tenham sido os seus resultados, não podem deixar de ter abalado a opinião pública. E não ousamos duvidar que surjam providências urgentes para que cesse uma situação que nos envergonha diante de nós mesmos. Pois enquanto tivermos em nossos costumes a censura prévia, o atestado de ideologia e a tortura policial, não podemos olhar tranquilamente a nossa imagem em um espelho.
LIMA, Alceu Amoroso. As três pragas. In:______. Revolução suicida. Rio de Janeiro, Brasília/Rio, 1977, p. 217-219.