Na pobreza e na riqueza
Crenças e preconceitos baseiam associações como
“se é caro, é bom” e “se é simples, é do povo”
No trecho que segue, apela-se para um valor como forma de argumentar: “Ele é pobre e sofreu muito na vida; se ele diz que a situação econômica do país é boa, temos de levar em conta seu ponto de vista.”(a)
Nesse caso, temos o que se chama argumentum ad lazarum (argumento em que se apela para a pobreza). O ponto de vista de alguém deve ser considerado, porque ele é pobre. É o argumento em que a veracidade da tese que se defende está fundada na pobreza de quem a enuncia. Isso significa que o valor em que se baseia esse argumento é o de que os pobres são mais sábios, mais sensatos e mais virtuosos do que os ricos.(b)
O nome desse raciocínio, argumentum ad lazarum, vem da parábola do pobre Lázaro (Lucas 16: 19-31), que narra a história do mendigo, de nome Lázaro, que, coberto de chagas, ficava à porta de um homem rico, querendo matar a fome com as migalhas que caíam de sua mesa. Ambos morreram e o pobre foi levado ao “seio de Abraão”, enquanto o rico padecia muitos tormentos na morada dos mortos(c). Este pede a Abraão que permita que Lázaro molhe a ponta de um dedo para refrescar-lhe a língua. Abraão diz que a situação entre eles se inverteu e o rico, que na vida só teve gozos, agora padece e que o pobre não poderá fazer nada por ele. Lázaro é uma antonomásia, um tipo de sinédoque, para designar “pobre”.
São argumentos ad lazarum os que fundamentam a defesa de um ponto de vista no fato de que aquele que argumenta “não busca ganhos materiais”, “é um simples e honesto homem do povo” etc.
Esse raciocínio tem um poder argumentativo muito forte, pois, afinal, todas as principais religiões consideram a pobreza um valor positivo. Por exemplo, em Mateus 19, 24, encontra-se este passo:
“É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”.
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O argumento contrário é chamado argumentum ad crumenam (argumento em que se apela para a riqueza). A palavra latina crumenam significa “bolsa” e, por metonímia, designa o dinheiro nela guardado e, portanto, a riqueza. É a afirmação em que se atribui veracidade a uma tese, porque quem argumenta é rico(d). “Suas opiniões sobre a economia brasileira devem estar corretas, porque ele está milionário.”
A força do argumento ad crumenam está também radicada em crenças e preconceitos profundamente arraigados na sociedade. Certos ramos do cristianismo sempre julgaram a riqueza um sinal de proteção divina. O voto censitário, que vigorou no Brasil durante todo o período imperial, é aquele em que se concede o direito de votar apenas a pessoas que tenham determinada renda, porque só elas são consideradas capazes de opinar nos negócios públicos.
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Quando se faz o contrário, louvando os ricos e recriminando os pobres ou elogiando um produto, porque é caro, estar-se-ia usando argumentos ad crumenam. O Marquês de Maricá, em muitas de suas máximas, considera que os ricos são ricos porque têm méritos, e que os pobres são pobres porque não os têm.(e)
“A pobreza e a preguiça andam sempre em companhia.”
“O pobre preguiçoso murmura do rico laborioso.”
“Com juízo, trabalho, inteligência e economia, é pobre quem não quer ser rico.”
“Homens há que parecem acusar a sociedade da sua pobreza, não refletindo que a devem ordinariamente aos seus vícios, ignorância, fatuidade e inflexibilidade de caráter.”
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Pode-se alargar ainda mais o conceito de argumento ad lazarum e ad crumenam para tudo, cujo valor reside, respectivamente, no menos ou no mais:
“Restaurante com fila na porta é bom. ‘Fila atrai fila’.”
(Veja, 12/11/2014, p. 99)
José Luiz Fiorin. Revista Língua, Abril de 2015, p. 20-22