TEXTO I
O futebol na ponta da língua
A paixão pelo futebol no Brasil vem esgarçando os limites da língua portuguesa há aproximadamente um século. Como qualquer outra língua, o português é vivo, dinâmico, aberto ao que o povo inventa na rotina de seus afazeres e lazeres. Com um diferencial: a espontaneidade brasileira, talentosa em driblar convenções, acaba desencadeando um vocabulário futebolístico rico e bem-humorado, utilizado até mesmo pelos “esquisitões” que odeiam o esporte — a vingança dos fanáticos contra as exceções! Assim, é possível ouvir a cada esquina frases do tipo: fulano “pisou na bola”, ou sicrano “joga nas onze”. A rua torna-se o melhor dicionário desse léxico matreiro, inventado por jogadores, locutores e comentaristas esportivos, pouco a pouco absorvido pela língua geral. Ao ser dicionarizada, a gíria do futebol ganha status de verbete, e comemora-se: a lexicografia dobra-se à força do jargão e sela sua vitória no cotidiano linguístico brasileiro.
O próprio verbo “driblar”, usado no início deste texto, é um exemplo: no Aurélio, é descrito como ato de “ultrapassar o adversário, ludibriando-o por meio de movimentos corporais”. Embora signifique o movimento específico do jogador com a bola, o seu uso na linguagem corrente extrapola as margens do campo, sugerindo uma forma de subverter determinada situação — o que, aliás, cabe bem na tradição de uma certa “malandragem” brasileira e diz muito da intimidade do cidadão com a sua língua.
Como atesta Ivan Cavalcanti Proença em Futebol e Palavra, “o jogador brasileiro é o que fala e fala o que é” — e isso acontece “através de um clima (e de uma força mesmo) intensamente poético: é a poesia do futebol, arte”.
Essa poesia urdida na tradição oral e enriquecida literariamente por autores como Nelson Rodrigues possui uma só raiz: a paixão — seja do jogador, do torcedor ou do comentarista esportivo.
— Sempre que deixamos a emoção tomar conta da linguagem, surgem vocábulos e expressões extremamente criativos e ricos para a nossa língua. O brasileiro, particularmente, é um povo que expressa sua emoção de uma maneira muito espontânea, fato que se reflete também na linguagem, mais especificamente, no léxico — explica Simone Nejaim Ribeiro, professora de Língua Portuguesa da Universidade Estácio de Sá (RJ).
Autora da dissertação de mestrado A linguagem do Futebol: Estilo e Produtividade Lexical (UERJ), Simone concorda com outros estudiosos do tema para quem o vocabulário do futebol é uma “linguagem especial”. Assim, alguns vocábulos que poderiam, de início, soar como “desvios lingiiísticos” deixam a margem para serem canonizados. É a razão sucumbindo à paixão.
Não à toa algumas expressões do futebol são transpostas para o dia a dia, remetendo-se por vezes ao campo sexual — em alguns casos, até mesmo com excessiva malícia. Ouve-se dizer, por exemplo, que uma mulher “esconde o jogo”, ou que, no flerte ou no relacionamento, é “reserva”, não a “titular” (a principal).
Homens fazem uma “marcação cerrada” quando desejam alguém e dizem “pimba na gorduchinha” (expressão de Osmar Santos que, a princípio, significa “chute na bola”) com um tonzinho que por vezes beira o vulgar. Tudo isso dizrespeito ao brasileiro e suas predileções, à sua psicologia. A língua é espelho.
Tanta criatividade origina mil e uma formas de se dizer a mesmíssima coisa. A bola, o grande objeto de culto, inspira incontáveis sinônimos: pelota, criança, perseguida, vagabunda, maricota, [...], redonda, gorduchinha. [...]
Mas quem, afinal, formula todo esse jargão?
— As expressões são uma criação dos jogadores e da imprensa. Romário criou, por exemplo, a expressão “peixe” para chamar algum companheiro, mas foram os jornalistas esportivos que, influenciados pela Liga Profissional de Basquete dos Estados Unidos (NBA), inventaram o termo “assistência”, para o jogador que dá o passe para outro marcar o gol. — diz Antônio Nascimento, editor de Esporte do jornal O Globo.
Foi dessa forma que grandes nomes da locução e da crônica esportiva deixaram seu legado à língua portuguesa. [...]
Inúmeras gírias não chegam ao dicionário, ou entram numa edição e saem na seguinte, por caírem em desuso. [...] Mas Silvio Lancellotti, comentarista da ESPN Brasil, compreende o caráter volátil desse “dialeto” dos campos:
— A dicionarização nem sempre acompanha a velocidade da linguagem especial. Nem vai conseguir [...]
Segundo Max Gehringer, existe uma diferença entre a “pátria de chuteiras” e outros países ligados ao esporte.
— No Brasil, as expressões aparecem e somem mais rapidamente. Nós somos um povo que, historicamente, adota e descarta palavras, de qualquer idioma, sem muito pudor linguístico.
Essa postura à vontade diante da própria língua é provavelmente uma das razões da expressividade dessa linguagem. Os jogadores também criam bordões, mas os cronistas esportivos obtêm maior êxito nessa tarefa pela velocidade com que conseguem difundi-los na mídia. Além disso, existe a pressão para que sejam originais e imprimam uma espécie de copyright na linguagem oral — o que funciona como marketing próprio e fortalece a imagem da emissora. [...]
Para Max, o mais engraçado, atualmente, é ouvir jogadores de futebol usando termos que quase ninguém mais usa. [...]
Num país de dimensões extraordinárias, os regionalismos são elementos a mais nesse vocabulário. Max Gehringer cita, por exemplo, a palavra “gol”, que no Rio Grande do Sul é “golo”; e as traves e o travessão são a “coleira”. Em Pernambuco, inventou-se o verbo “cascavinhar” para indicar o jogador que segura demais a bola.
No contexto maior da língua portuguesa, Simone Nijaim pesquisou ainda termos distintos no Brasil e em Portugal: lá “alegado-fora-de-jogo” significa impedimento; rodada é “jornada”; e o gol é “moldura”. Se, “para entender a alma de um brasileiro, é preciso surpreendê-lo no instante de um gol”, como disse Armando Nogueira, para comunicar-se com ele, é necessário apreendê-lo em seu ponto sensível — a língua, esta que é tecida na alegria e na dificuldade do dia a dia, num jogo linguístico-esportivo em que o técnico é, sem dúvida, o povo.
Adaptado de: HIDALGO, Luciana. O futebol na ponta da língua. Revista Língua Portuguesa Especial:
Futebol e Linguagem, p. 9-13, abr. 2006.