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Câmara Municipal de Juiz de Fora
Questão 1 de 1

Leia o texto e responda à questão.

 

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.

 

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.

 

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

 

Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

 

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

 

Acorda, donzela...

 

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

 

Aqui se estrepou...

 

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

 

Anjo adorado!

 

Amo-lhe!

 

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

 

Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas

aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

 

- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.

 

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor-de-rosa, desdobrou-o.

 

- É sua esta peça de flagrante delito?

 

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

 

- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora…

 

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

 

- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

 

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

 

- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

 

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

 

- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

 

E voltando-se para dentro, gritou:

 

- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

 

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

 

- Laurinha, quer o coronel dizer…

 

O velho fechou de novo a carranca.

 

- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”.

 

Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo.

 

Salvo se declara amor à minha mulher (…).

 

(LOBATO, Monteiro. O Colocador de Pronomes. In: PINTO,

Edith Pimentel (org.). O Português do Brasil: textos críticos e

teóricos II - 1920-1945 – Fontes para a teoria e a história. São

Paulo: Edusp, [1924] 1981, p. 51-79.)

 

Assinale a opção CORRETA em relação ao texto.



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