O céu pode esperar
Certa manhã acordei com uma rádio de Belo Horizonte noticiando que Humberto Werneck havia morrido. Para quem, como eu, chama-se Humberto Werneck, não há pior maneira de começar o dia.(a)
Nem um minuto se passou e em nossa casa começaram a desabar dezenas de telefonemas,(b) de amigos e parentes consternados com o meu falecimento. Não me ocorreu saborear aquelas manifestações póstumas de estima e consideração. Estava ressabiadíssimo.
Pelo meio-dia, já mais à vontade, veio-me a ideia macabra de comparecer a meu próprio velório. Só não fui porque minha mãe me alertou para as imprevisíveis consequências(c) de encontrar, à beira do caixão, alguém que ali chegasse para me velar.
Durante anos, de fato, volta e meia topei com pessoas que me julgavam morto − um conhecido deixou cair uma garrafa de cerveja ao me ver entrar, vivinho, na Lanchonete Nacional. Mas não foi desse susto, felizmente, que meu amigo veio a morrer, pouco tempo mais tarde.
Quanto a mim, acabei tropeçando um dia com o que poderia ser o meu túmulo, enquanto procurava o de meus avós no cemitério Bonfim. Não há como descrever a sensação de ler, numa lápide negra, o nosso nome(d) e as datas de nascimento e morte.
Fui à Administração e exumei a ficha: o inquilino da sepultura era um segundo-sargento da Polícia Militar mineira.
Fosse apenas o sargento − mas não: tempos depois, me morre outro Humberto Werneck, no Rio de Janeiro. Nunca mais me livrei da impressão de que, já tendo morrido dois,(e) a bola da vez, agora, sou eu.
(Humberto Werneck, “O céu pode esperar”, O espalhador de passarinhos, 2010. Adaptado)