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Prefeitura Municipal de Paraty
Questão 1 de 1
Assunto: Vocábulo "Que"

Seu Afredo

 

Seu Afredo (ele sempre subtraía o “l” do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: “Afredo Paiva, um seu criado...”) tornou-se inesquecível à minha infância porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, não ia muito lá das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha mãe ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernáculo e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho.

 

Tratava-se de um mulato quarentão, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupação linguística perturbava às vezes a colocação pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha mãe ficou ligeiramente ressabiada quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe à queima-roupa, na segunda do singular:

 

– Onde vais assim tão elegante? Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha mãe, em meio à lide caseira, queixou-se do fatigante ramerrão do trabalho doméstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse:

 

– Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito bão.

 

De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe:

 

– Cantas?

 

Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo:

 

– É, canto às vezes, de brincadeira…

 

Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha mãe, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador:

 

– Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de respeito, não. É excesso de... gramática.

 

Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarçado e falou:

 

– Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa menina, sua irmã, se ela pensa que pode cantar no rádio com essa voz, tá redondamente enganada. Nem em programa de calouro!

 

E, a seguir, ponderou:

 

– Agora, piano é diferente. Pianista ela é!

 

E acrescentou:

 

– Eximinista pianista!

 

MORAES, V. Seu Afredo. In: Para uma menina com uma flor. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 65-66.

 

Em “[...] porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador.”, a palavra “que” é empregada como um(a):



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