Texto 1
Professora e linguista com 70 anos no serviço público vê equívoco em termo 'linguagem neutra'
Maria Helena de Moura Neves, 91, atua como docente da pós-graduação em linguística e língua portuguesa na Unesp e defende linguagem inclusiva
Emerson Vicente
Desde que pisou em uma sala de aula como professora, há mais de sete décadas, a paulista Maria Helena de Moura Neves, 91 anos recém-completados, viu que era ali a sua segunda casa. E nunca mais parou. Até hoje exerce a função de ensinar. Também segue atualizada em debates em torno da língua portuguesa, como no do uso da linguagem neutra, que entende não ser o termo apropriado, apesar de "louvável".
"Considero um equívoco o uso desse termo ‘linguagem neutra’ para a proposta que ele representa. Na verdade, esse movimento visa a inclusão social, sem discriminações, de todos os grupos da sociedade, tratando-se, pois, da proposta de uma ‘linguagem inclusiva’ [A], ou ‘língua inclusiva’, o que é extremamente louvável", diz Maria Helena.
"Quando alguém usa, nas suas produções linguísticas, orais ou escritas, as marcas linguísticas que têm sido propostas com essa finalidade, ele está exercendo um papel social, marcado e importante, de condenação das discriminações", diz a decana.
"Entretanto, não se pode supor que, em um determinado momento da vida da sociedade, algum falante de uma língua, ou algum contingente de falantes, impelido pela motivação de uma conduta desejável, terá sucesso propondo uma alteração do 'sistema' da língua."
Segundo a professora, toda e qualquer língua se rege por um sistema [D], dentro do qual seus falantes constroem linguagem naturalmente, sem necessidade de nenhum aprendizado.
"Se recuperarmos historicamente as alterações de sistemas linguísticos [E], até com extinção de línguas e com criação de novas línguas, veremos que as mudanças, em cada sistema, fizeram-se a partir do uso natural da língua por uma comunidade."
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/03/professora-e-linguista-com-70-anos-no-servico-publico-ve-equivoco-em-termo-linguagem-neutra.shtml Acesso em 27 dez. 2022. Adaptado.
Texto 2
Línguas que não sabemos que sabíamos
Mia Couto
Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as insuportáveis dores. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:
̶ Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.
̶ Desconhecida? – pergunta ele.
̶ Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada!
O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala [B], se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida [C], e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos juntos.
Na nossa infância, todos nós experimentamos este primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o género literário.
Eu creio que todos nós, poetas e ficcionistas, não deixamos nunca de perseguir esse caos seminal. Todos nós aspiramos regressar a essa condição em que estivemos tão fora de um idioma que todas as línguas eram nossas. Dito de outro modo, todos nós somos impossíveis tradutores de sonhos. Na verdade, os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra sabe dizer.
O nosso fito, como produtores de sonhos, é aceder a essa outra língua que não é falável, essa língua cega em que todas as coisas podem ter todos os nomes. O que a mulher doente pedia é aquilo que todos nós queremos: anular o tempo e fazer adormecer a morte.
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp.11-12. Adaptado.