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Marinha do Brasil
Questão 1 de 1
Assunto: Sem classificação

NÃO FAÇA MAIS ISSO, DONA

 

Em matéria de assaltos, a última que me contaram tem esta singularidade: o assaltante recusou-se a assaltar.

 

Foi o caso que a velha senhora pediu a um desconhecido que a acompanhasse até à porta da casa. Era noite, a rua escura estava normalmente cheia de buracos, como toda rua que se preze no Rio, e a tal senhora enxergava pouco. O homem prontificou-se a guiá-la. Os dois iam comentando o mau estado da rua. Já não se pode mais andar como antigamente. [...]. Um horror, o senhor não acha? Acho sim senhora, tem toda a razão. Eu até nem devia voltar tão tarde para casa, fui ver meus netinhos, minha filha insistiu comigo para que eu ficasse mais tempo, o senhor sabe, a gente acaba cedendo. [...]. Pois é. Graças a Deus encontrei o senhor no meu caminho, vejo que é um cavalheiro, quero até lhe pedir desculpas pelo incômodo que estou lhe dando.

 

Incômodo nenhum, dona, a gente podendo servir aos outros a gente até fica satisfeito. Obrigada. Então vou pedir ao senhor mais um favorzinho. Pois não, a senhora manda. Me faça o favor de abrir a porta para mim, com essa falta de luz na rua eu não acerto com o buraco da fechadura. Com todo prazer. Cadê a chave? Espere um momentinho, vou abrir a bolsa, não sei onde botei esta chave, eu acho que os netos andaram bulindo nela, meu Deus do céu... [...] Fique calma, dona, procure devagar, capaz da chave estar num desses bolsinhos fechados dentro da bolsa, quem sabe?

 

Não, não pode ser, eu boto sempre a chave em cima do lenço e dos objetos de toalete, para não ter trabalho de procurar. Mas se por acaso seus netos esconderam ela num desses tais bolsinhos? Não custa procurar, vamos lá, eu não tenho pressa, madame, pode remexer à vontade aí dentro, fico esperando.

 

É, o senhor espera mesmo, não vai ficar impaciente? Tenho tanto medo de incomodar os outros! Fui educada assim, meus pais sempre recomendavam que a gente não deve atrapalhar a vida do próximo, eu estou tomando o seu tempo, não tenho o direito... Ora, que é isso, dona, abra os compartimentos, me deu uma luz que a chave está dentro de algum lugarzinho escondido da bolsa. É, vou procurar, quem sabe se o senhor tem razão, às vezes uma coisa está no lugar que ninguém pensava que estivesse. Pronto, neste não está, viu? Tem só o retratinho de minha filha que mora nos Estados Unidos, ando com tanta saudade dela! [...]. Quer ver como ela é bonita, repare só no rostinho, nos olhos... Uma graça, não é por ser minha filha, mas a Titita é um amor. Estou aflita para ela voltar casada com um americano desses que são respeitadores, gente de confiança. Tá bem, dona, mas quer abrir o outro compartimento? Ah, é mesmo, estava me esquecendo, neste aqui estão só as minhas jóias, quando eu volto sozinha de noite costumo tirar os brincos e o anel, guardo aqui dentro. Mas não estou conseguindo abrir, o fecho enguiçou, ou eu estou nervosa e não acerto... Posso ajudar, madame? Quem sabe se eu acerto? Com licença, vou tentar.

 

Pronto, aqui está sua chave, dona. Muito, muito obrigada, meu filho! Agora mais um favor, gire a chave na fechadura. Pois não.

 

Pode entrar, dona. Agora um conselho pra senhora. Não volte sozinha pra casa, de noite. Nem peça a um desconhecido pra servir de companhia. Eu sou assaltante, vivo disso, e só não limpei as suas jóias porque a senhora me chamou de meu filho. Nunca ninguém me chamou de meu filho, depois de minha mãe, que já morreu. Boa-noite, dona, e não faça mais isso, tá legal?

 

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Boca de luar. 11. ed., Rio de Janeiro: Record, 2009, pp.135-137)

 

Assinale a opção que equivale ao termo a última, em “[...] a última que me contaram tem esta singularidade: o assaltante recusou-se a assaltar.”.



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