“Se um médico abriu um tumor ou tratou com faca uma ferida grave e isso curou o doente, ele receberá dez siclos [unidade de peso usado no antigo Oriente] de prata se o paciente for um homem livre; cinco siclos se for um descendente de plebeus; dois siclos se for um escravo. Se um médico abriu um tumor ou tratou com faca uma ferida grave e isso causou a morte da pessoa, então suas mãos serão cortadas, se se tratar de um homem livre, ou deverá fornecer outro escravo, se se tratar do escravo de um plebeu.”
Trechos do código de Hamurabi, escrito na Mesopotâmia por volta de 1.700 a.C. Várias civilizações desenvolveram-se na região entre o Tigre e o Eufrates, e muitas delas chegaram a um alto grau de sofisticação em termos de arquitetura e arte. Ali surgiram conceitos básicos de matemática; ali foram feitas importantes colaborações à astronomia e à metalurgia. Em termos de saúde e doença, contudo, esses povos compartilhavam a crença geral do mundo antigo, segundo a qual a enfermidade era um castigo imposto pelos deuses aos pecadores. Demônios encarregavam-se de proporcionar males específicos: Nergal trazia a febre, Namtaru, dor de garganta, Tiu, dor de cabeça. Havia divindades da cura, Ningishzida, cujo símbolo era uma cobra de duas cabeças – a serpente viria a se tornar depois o emblema da medicina.
Os médicos da Mesopotâmia recorriam aos métodos divinatórios para descobrir o pecado cometido pelo doente; para isso, inspecionavam as entranhas de animais abatidos para apaziguar os deuses. Os médicos se dividiam em três categorias: o baru encarregava-se dos procedimentos divinatórios, o ashipu realizava o exorcismo e o asu fazia as curas propriamente ditas, nas quais, além de preces e rituais, várias substâncias eram usadas. O código de Hamurabi mostra que vários tipos de operações eram feitas. Que o resultado nem sempre era satisfatório, mostram as punições prescritas para o caso de fracasso. Cortar as mãos é uma pena até hoje aplicada no Oriente Médio (para ladrões); no caso, destinava-se obviamente a evitar que um doutor desastrado repetisse o erro. Mas o pagamento também era compensador, quando se considera que um artesão ganhava um décimo de siclo por dia, segundo os documentos da época.
(Adaptado de: SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: história da medicina na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1996)