LEIA O TEXTO ABAIXO E RESPONDA À QUESTÃO.
PARA ISSO HAVIA VINDO DO CEARÁ
Bem-Te-Vi morreu há quase dois anos, mas, no momento mesmo em que foi morto, nem bem o carregavam como um fardo, já ia rumo ao esquecimento. Reis são mortos e postos a toda hora na Rocinha. Naquele dia, ia vistoriar seus postos de comércio cercado por 12 seguranças, sua guarda pretoriana, mas não sabia que, no caminho, policiais com 4 mil munições estocadas numa quitinete esperavam por ele. Ninguém os havia visto entrar sorrateiros na cidadela, atravessando as vielas.
Para isso havia vindo do Ceará. Para parar diante da quitinete às duas e tantas da madrugada daquele exato sábado, com seu cabelo pintado de vermelho, sua pistola Glock, seus 28 anos e a certeza de ter vencido na vida.
Quem lhe pôs o apelido de Bem-Te-Vi não pensou no alçapão. E o apelido deve ter sido posto antes dele virar bandido, porque bandido não tem apelido, tem codinome, e não ficaria bem a um bandido ser chamado como passarinho. Pelo menos não ao bandido que se sabia o mais procurado pela polícia, e que com seu celular se fotografou sorrindo, de peito nu, empunhando uma Uzi dourada. Àquele melhor caberia chamar-se Gavião.
Erismar, como havia sido batizado no começo de tudo, quando ainda não era possível – ou era? – prever sua trajetória, chegou no Rio aos 11 anos e aos 14 entrou para o tráfico. Os jovens que estão transformando as periferias de Paris em campo de batalha, incendiando carros e destruindo escolas, devem ter aproximadamente a mesma idade. Sim, é claro, os jovens franceses que a França abriga tão a contragosto, vindos das antigas colônias ou filhos de emigrantes, estão defendendo a sua cidadania, o seu direito à igualdade. Os jovens sempre descarregam em guerras o excesso de testosterona, e as causas nobres sempre justificam a guerra.
Um traficante não luta por causas nobres. Um traficante quando distribui presentes à comunidade e faz assistencialismo não é, à moda de Robin Hood, para redistribuir renda, mas para garantir conivência. Um traficante é uma variante de mercenário, faz guerra pelo butim e pela possibilidade, ainda que pequena, de vir um dia a ser chefe, com armas douradas, guarda de corpo e três mulheres.
Mas na sociedade do eu, que estimula a satisfação dos desejos e se esmera em multiplicá-los, na sociedade midiática em que 15 minutos de fama são meta mais recomendável do que uma digna vida obscura, na nossa sociedade que, após ter falsamente horizontalizado os bens e as marcas se volta agora para o luxo mais desenfreado e exclusivo, o dinheiro pode ser considerado uma causa suficientemente nobre para fazer-se soldado.
O reinado de Bem-Te-Vi não durou nem dois anos. O de Soul, seu sucessor, durou apenas dois dias. Ambos haviam acompanhado seu chefe, Lulu, e o haviam visto ser morto pela polícia.
Ambos sabiam que só teriam 15 minutos pela frente. Mas achavam que valia a pena. E nas favelas deste país, que só fazem crescer, há cada vez mais jovens pensando dessa maneira.
(Marina Colasanti – Jornal do Brasil, Caderno B – 6 de novembro de 2005, com adaptações)