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Texto 1

 

Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração.

 

Às vezes uma voz atalhava:

 

— Dona, uma esmolinha...

 

Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento.

 

Que custo, atravessar aquele atravancamento de gente imunda, de latas velhas, e trapos sujos!

 

Mas uma voz a fez parar.

 

– Doninha, dona Conceição, não me conhece?

 

Era uma mulata de saia preta e cabeção encardido, que, ao ver a moça, parara de abanar o fogo numa trempe, e a olhava rindo.

 

Conceição forçou a memória.

 

– Sim... Ah! É a Chiquinha Boa! Por aqui?

 

Mas você não era moradora de seu Vicente? Saiu de lá?

 

A mulher inclinou a cabeça para o ombro, coçou a nuca:

 

– A gente viúva... Sem homem que me sustentasse... Diziam que aqui o governo andava dando comida aos pobres... Vim experimentar...

 

Já Conceição, esquecendo a pressa, sentara-se num tronco de cajueiro, interessada por aquela criatura que chegava do sertão:

 

– E tudo por lá? Bem?

 

– Vai, sim senhora. Seu Major, dona Idalina e as moças foram pro Quixadá. Só ficou o seu Vicente...

 

Conceição espantou-se:

 

– E eu não sabia! Também faz dias que a Lourdinha não me escreve! Então o Vicente está sozinho? Por quê, coitado?

 

– Ora, as moças pegaram a falar que não aguentavam mais... Seu Vicente também achava ali muito ruim para a família... Sem banho, mandando buscar água a mais de légua de distância... Ele mesmo só ficou porque carecia dele lá, mode o gado. Mas toda semana vai no Quixadá...

 

A moça comoveu-se com esse isolamento:

 

— Imagino como a vida do pobre não é triste!

 

A mulher riu-se.

 

– Qual nada! Seu Vicente é pessoa muito divertida... É naquela labuta, mas sempre tirando prosa com um, com outro... É um moço muito sem bondade... Dizedor de prosa como ele só!...

 

Conceição deixava-a falar, e a Chiquinha continuou, num riso malicioso:

 

– E até aquela filha do Zé Bernardo, só porque sempre ele passa lá e diz alguma palavrinha a ela, anda toda ancha, se fazendo de boa...

 

Conceição estranhou a história e não pôde se conter:

 

– E ele tem alguma coisa com ela?

 

A mulata encolheu os ombros:

 

– O povo ignora muito... se tiver, pior pra ela... Que moço branco não é pra bico de cabra que nem nós...

 

A conversa principiou a incomodar Conceição; o mau cheiro do campo parecia mais intenso; e levantou-se, dando uma prata à mulher:

 

– Amanhã eu volto e vejo como vocês vão... Todos os dias venho aqui, ajudar na entrega dos socorros... Se você tiver muita precisão de alguma coisa, me peça, que eu faço o que puder...

 

Quando transpôs o portão do Campo, e se encostou a um poste, respirou mais aliviada. Mas, mesmo de fora, que mau cheiro se sentia!

 

Através da cerca de arame, apareciam-lhe os ranchos disseminados ao acaso. Até a miséria tem fantasia e criara ali os gêneros de habitação mais bizarros

 

Uns, debaixo dum cajueiro, estirados no chão, quase nus, conversavam.

 

Outros absolutamente ao tempo, apenas com a vaga proteção de uma parede de latas velhas, rodeavam um tocador de viola, um cego, que cantava numa melopeia cansada e triste:

 

Ninguém sabe o que padece

Quem sua vista não tem!...

Não poder nunca enxergar

Os olhos de quem quer bem!...

 

E junto deles, uma cabocla nova atiçava um fogo.

 

Uma velha, mais longe, sentada nuns tijolos, fazia com que uma caboclinha muito magra e esmolambada lhe catasse os cabelos encerados de sujeira.

 

E, além, uma família de Cariri velava um defunto, duro e seco, apenas recoberto por farrapos de cor indecisa.

 

Conceição sabia quem ele era. Tinha morrido ao meio-dia, e a sua gente teimava em não o misturar com os outros mortos.

 

O bonde chegou.

 

Ainda sob a impressão da conversa com a Chiquinha Boa, a moça pensava em Vicente. E novamente sofreu o sentimento de desilusão e despeito que a magoara quando a mulher falava.

 

“Sim, senhor! Vivia de prosear com as caboclas e até falavam muito dele com a Zefa do Zé Bernardo!”

 

E ela, que o supunha indiferente e distante, e imaginava que, aos olhos dele, todo o resto das mulheres deste mundo se esbatia numa massa confusa e indesejada...

 

Que julgara ter sido ela quem lhe acordara o interesse arisco e desdenhoso do coração!...

 

“Uma cabra, uma cunhã à toa, de cabelo pixaim e dente podre!...”

 

(QUEIROZ. R. O quinze. Rio de Janeiro: José

Olympio, 2012)

 

O texto 1 compõe a obra O Quinze da escritora cearense Raquel de Queiroz. Uma característica estilística que pode ser atribuída à obra dessa escritora está no item:



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