Enunciados de questões e informações de concursos

Leia o texto a seguir e responda a questão.

 

Guerrilha urbana

 

Algumas atividades entortam as pessoas. Umas entortam o corpo, como as pernas arqueadas dos caubóis, a corcunda dos alfaiates, os braços desiguais dos tenistas, os ombros dos nadadores, a lordose das bailarinas de tchan music. Outras atividades – como a de polícia, agente financeiro, jornalista – entortam a cabeça. Meu amigo era jornalista.

 

Era. Meio que pirou. Isto já é o meio da história, vamos ao começo. Era copidesque, do tempo em que o copidesque tinha poder nas redações: reescrevia, corrigia e titulava as matérias. Não possuía nenhum talento especial, a não ser a intimidade com a gramática. Nem era jornalista formado, havia parado no meio do curso de Direito, fascinado pela oportunidade de trabalhar na “cozinha da redação”. Refogava concordâncias, descascava solecismos.

 

Chama-se Antônio. Por ser baixo, virou Toninho. E pela devoção, à gramática Toninho Vernáculo ficou sendo. Seu talento especial valeu-lhe

uma promoção, de copidesque para chefe de revisão. Passou anos e anos corrigindo originais. Novas tecnologias invadiram as redações no final da década de 80. Com os computadores, acabou-se a revisão. Ao leitor, as batatas.

 

Toninho Vernáculo foi deixado num canto, espécie de dicionário vivo. Recorriam a ele quando tinham preguiça de consultar o manual. Irritava-se. Então, meio que pirou. Achava que alguns tinham questões pessoais com a língua portuguesa, arranca-rabos com a sintaxe. Um não suportava a crase. Aquele tinha escaramuças com o infinitivo pessoal. Outro abominava a regência. Toninho não aguentou, aposentou-se.

 

Novos desafetos da língua passaram a provocá-lo pela televisão, em casa. O ator Antônio Fagundes vinha andando para a câmara e atacava de pleonasmo: “há muitos anos atrás investi no boi gordo.”. A repórter de feira dizia que “o” alface encareceu. Lula confiava “de que” o partido sairia fortalecido. O jingle publicitário apelava: “vem” pra Caixa você também! Toninho brigou com a tevê:

 

É venha! Venha você! Vem tu!

 

Uma ótica anunciava: faça “seu” óculos... Meu amigo largou a tevê, pegou o jornal: vendas à prazo. Sentia-se acuado, pessoalmente agredido. Um dia, lendo Monteiro Lobato, topou com o conto “O Colocador de Pronomes”, no qual o personagem sai pela cidade corrigindo pronomes mal colocados. Iluminou-se. Era um recado.

 

Hoje, Toninho Vernáculo é um dos dois ou três santos da ortografia que andam por São Paulo corrigindo o português nas placas das padarias, nos cardápios dos restaurantes populares, nos anúncios classificados dos jornais. Telefona para os anunciantes:

 

Olha, vendas a prazo não tem crase. Não se usa crase antes de palavra masculina.

 

Telefona para as regionais de Prefeitura, exigindo a retirada do acento agudo de placas de ruas e praças: Traipu, Itapicuru, Pacaembu, Barrra do Tibagi, Turiassu (“é com ‘c’ cedilhado, implora)... Centenas de casos. Há dias encontrei-o comprando tinta e escada. Anunciantes de cerveja não quiseram mudar um cartaz, tinha rido dele. É um advérbio em ‘mente’ abreviado, disseram, significa redondamente, de modo redondo. Retrucou: por que não de maneira redonda? Outros opinaram: é locução, como “fala grosso”. Protestou: chuva cai fininha, sol nasce quadrado, lua nasce quadrada. Riram. resmungou: fiquem com a sua opinião, eu fico com minha. Ia partir para a guerrilha armado de tinta e pincel, atacar os painéis de madrugada:

 

Uísque é que desce redondo. Cerveja desce redonda!

 

(Ivan Ângelo. In: O comprador de aventuras. São Paulo: Ática, 2000. Coleção Para gostar de ler, volume 28, p.1820)

 

Sobre o texto, pode-se afirmar que:



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