Os Tribunais de Contas e o Mérito do Ato Administrativo com Relação à Economicidade
Quando a questão falar sobre a possibilidade dos Tribunais de Contas realizarem análise de mérito com relação a economicidade do ato administrativo, o candidato precisa redobrar sua atenção porque marcar a alternativa correta pode não ser uma tarefa tão trivial.
O assunto é tão complexo que daria para escrever uma tese de doutorado sobre ele, mas vou tentar por meio da apresentação de alguns posicionamentos doutrinários esclarecer esse ponto para poder ajudá-los a decidir qual alternativa marcar a depender da situação.
Para começar vamos falar sobre os requisitos necessários à formação do ato administrativo. São eles: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Os três primeiros são vinculados, isto é, a lei já predetermina seu inteiro teor, e os dois últimos comportam alguma margem de liberdade, isto é, possuem certo grau de discricionariedade pois a lei não é capaz de definir todas as soluções possíveis para compatibilizar o ato com os casos concretos. Nesse sentido, percebe-se que os três primeiros podem ser balizados apenas pela legalidade, enquanto os dois últimos, além da legalidade, possuem um componente que é subjetivo, qual seja, o mérito.
Para Odete Medauar (2018),
[…] no estudo do ato administrativo devem ser mencionados os aspectos de legalidade e mérito. A legalidade do ato administrativo diz respeito, em síntese, à sua conformação às normas do ordenamento. A margem livre sobre a qual incide a escolha inerente à discricionariedade corresponde ao aspecto de mérito do ato administrativo. Tal aspecto expressa o juízo de conveniência e oportunidade da escolha, no atendimento do interesse público, juízo esse efetuado pela autoridade à qual se conferiu o poder discricionário.
Disso se extrai que o mérito administrativo envolve o juízo de conveniência e oportunidade. Para Beatrice Maria Pedroso da Silva (2003) a oportunidade do ato relaciona-se com o motivo, isto é, com os pressupostos fáticos e jurídicos, ao passo que a conveniência está relacionada ao objeto do ato, isto é, recai sobre seu conteúdo.
Resumindo e sistematizando até aqui temos que:
Requisito | Tipo | Aspecto | Juízo |
Competência | Vinculado | Legalidade | |
Finalidade | Vinculado | Legalidade | |
Forma | Vinculado | Legalidade | |
Motivo (pressupostos fáticos e jurídicos) | Comporta alguma discricionariedade | Legalidade e Mérito | Oportunidade |
Objeto (conteúdo) | Comporta alguma discricionariedade | Legalidade e Mérito | Conveniência |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Embora mérito não se confunda com discricionariedade, a análise que se faz quanto a ele está diretamente relacionada a margem de discricionariedade que existe para a prática do ato. Odete Medauar (2018) ensina que o mérito administrativo expressa o juízo de conveniência e oportunidade da escolha, no atendimento do interesse público, juízo esse efetuado pela autoridade à qual se conferiu o poder discricionário. Já Marçal de Justen Filho (2002) diz que o núcleo do conceito de discricionariedade reside numa avaliação de oportunidade que conduz à eleição de uma dentre diversas alternativas possíveis. Mas essa escolha é orientada à realização do interesse público, assim entendido como o resultado de uma ponderação dos efeitos da decisão sobre os diversos interesses secundários em vista do fim público a atingir.
Para Odete Medauar (2018) o contraponto entre os aspectos de legalidade e mérito do ato administrativo aparece, sobretudo, no tema do controle jurisdicional da Administração, ao se discutir o alcance desse controle. Menciona-se classicamente que ao Judiciário descabe o exame do mérito dos atos administrativos. Em obras contemporâneas sobre poder discricionário, aponta-se a tendência a considerar que o contraponto legalidade-mérito se encontra atenuado no momento presente, pela amplitude dos parâmetros do exercício do poder discricionário e pela consideração de bases mais amplas da legalidade. Alexandre de Moraes (2002) destaca que tem havido uma evolução da doutrina administrativista, mediante a redução interpretativa da palavra “mérito”, no intuito de, com fundamento na teoria relativa ao desvio de poder ou de finalidade e na teoria dos motivos determinantes, afastar arbitrariedades praticadas pela Administração Pública a pretexto do exercício de seu poder discricionário.
Segundo Luís Roberto Barroso (2002):
A doutrina costuma identificar como os típicos elementos vinculados e, portanto, suscetíveis de avaliação pelo Poder Judiciário a competência, a forma e a finalidade do ato. Não se admite que o Judiciário exerça um controle do chamado “mérito do ato administrativo”, consubstanciado, de acordo com o conhecimento clássico, nos elementos motivo e objeto do ato, nos quais residiria a discricionariedade administrativa do agente público. Esse entendimento, que fez carreira no direito público brasileiro por muitas décadas, e que de certa forma ainda é de grande utilidade, confronta-se, todavia, com alguns conceitos novos.
O entendimento clássico de que não é possível exercer controle de mérito sobre os atos administrativos hoje cede a algumas exceções importantes de desenvolvimento recente e fulgurante, a saber: os princípios da razoabilidade, da moralidade e, já mais recentemente, o princípio da eficiência. Esses três princípios excepcionam o conhecimento geral de que o mérito do ato administrativo não é passível de exame. Isso porque verificar se alguma coisa é, por exemplo, razoável, ou seja, se há adequação entre meio e fim, necessidade e proporcionalidade – é, evidentemente, um exame de mérito. Portanto, a doutrina convencional a respeito do controle dos atos administrativos, incluindo-se aí os atos das agências reguladoras, subsiste, mas com essas exceções: é possível controle de mérito nas hipóteses de verificação da razoabilidade, moralidade e eficiência do ato.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1991) relata que existem limites à discricionariedade: limites quanto à oportunidade, para integrar o elemento “motivo” do ato, e limites quanto à conveniência, para integrar o elemento “objeto” do ato administrativo, devendo a discricionariedade atuar como a competência específica para valorar corretamente o motivo dentro dos limites da lei e para escolher acertadamente o objeto, também dentro dos limites da lei. O jurista ainda frisa que, sob o princípio da razoabilidade, a aplicação discricionária da norma jurídica não pode conduzir a resultados que ignorem, desconsiderem ou traiam os interesses públicos a que devam atender, haja vista que, à luz da razoabilidade, “a discricionariedade ganha sua justificação teleológica”, consistente no dever legal de boa administração.
Ainda nessa linha, Moreira Neto (1991) também afirma que a razoabilidade, agindo como um limite à discrição na avaliação dos motivos, exige que sejam eles adequáveis, compatíveis e proporcionais, de modo que o ato atenda a sua finalidade pública específica; agindo também como um limite à discrição na escolha do objeto, exige que ele se conforme fielmente à finalidade e contribua eficientemente para que ela seja atingida. Beatrice Maria Pedroso da Silva (2003) alerta que não existirá discricionariedade quando for possível apurar qual a melhor alternativa para a efetivação do interesse público, de sorte que, no exame da discrição administrativa, não basta averiguar se o ato praticado está dentre os possíveis, é necessário que ele seja o ato excelente, isto é, que reúna todas as condições para o perfeito atendimento da finalidade que a norma jurídica encerra.
No âmbito dos Tribunais de Contas, Zymler e Almeida (2005) argumentam que esses órgãos acabam por exercer um controle de mérito quando aferem a eficiência, a economicidade e a legitimidade de atos, contratos ou prestações de contas. Esse controle de mérito funda-se em princípios constitucionais tais como os da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência e em princípios específicos dos Tribunais de Contas tais como legitimidade e economicidade. Atendo-se principalmente a esse último, não se pode olvidar que os Tribunais de Contas em sua atuação precisam considerar a questão da economicidade dos atos praticados.
Para José Nagel (1997), o controle da economicidade tem por objetivo: aferir a relação entre o custo e o benefício das atividades e resultados obtidos pelos administradores na gestão orçamentária, financeira e patrimonial, pelos aspectos da eficiência e eficácia e à luz de critérios ou parâmetros de desempenho. O controle sobre essa ótica precisa consequentemente ser feito à luz da razoabilidade, o que envolve fazer considerações a respeito do mérito. José Afonso da Silva (1996) entende que o controle de economicidade envolve questão de mérito. Segundo ele, para verificar se o órgão procedeu, na aplicação da despesa pública, de modo mais econômico, atendendo, por exemplo, uma adequada relação custo-benefício. Para Paulo Soares Bugarin (2001)
[…] no duplo e complementar exame da eficiência e da economicidade dos atos públicos de gestão, não se admite mais considerar o mérito do ato administrativo como empecilho à atuação do Controle Externo, em especial, nas situações em que se possa, diante do universo fático, determinar, racional e fundamentadamente, qual a alternativa que melhor atende o interesse público. Tal constatação, destaque-se, reforça a tese de que a Constituição Federal autoriza e impõe a avaliação pelos Tribunais de Contas do conjunto amplo de questões que se referem ao chamado mérito administrativo.
Ressalto, todavia, que o tema está longe de ser pacífico na doutrina tanto é que administrativistas conceituados como Carvalho Filho (2008), Helly Lopes Meirelles (2007), Maria Sylvia Zanella di Pietro (2002) e Carlos Ari Sundfeld (2017) rechaçam essa possibilidade e entendem que as decisões dos Tribunais de Contas são estritamente técnico-jurídica e não decorrem de análise de mérito administrativo (de conveniência ou oportunidade. Segundo Sundfeld et al (2017) quem defender que o Tribunal de Contas pode expedir condenações porque um ato fora considerado antieconômico, logicamente aceitará que o juízo de economicidade foi juridicizado.
Conclui-se, portanto, que, embora predomine a regra de que o Tribunal de Contas não deve fazer juízo de conveniência e oportunidade para não adentrar no mérito do ato administrativo pois é preciso respeitar a discricionariedade do Administrador Público, essa discricionariedade possui limites e quando o objetivo é avaliar a economicidade do ato, torna-se necessário verificar tanto a adequação do ato praticado em relação às leis quanto considerar aspectos relativos ao mérito, pois se assim não fizesse, tornar-se-ia sem efeito a previsão constitucional de que cabe ao Tribunal de Contas exercer o controle sobre o aspecto da economicidade.